Reportagem Primavera Sound Barcelona 2019
Um festival da dimensão do Primavera Sound Barcelona, onde o recinto é grande, o cartaz maior e a mensagem igualmente imponente, dificulta o trabalho de quem assiste pela primeira vez e tem que descrevê-lo. Um ambiente multicultural e inclusivo, onde a música é o pano de fundo para uma celebração do New Normal e dos novos valores importantes nesta indústria, como a igualdade de género.
Depois de alguns dias de festa estendidos pela cidade, o Primavera arrancou oficialmente no Parc Del Fórum no dia 30 de maio. Pelos diversos palcos presentes no recinto, foi iniciando com nomes como Alice Phoebe Lou, no seu registo habitual e envolvente, e Big Thief, banda americana que cativa sempre os seus seguidores a acompanharem ao vivo, a abrirem os palcos principais.
Quando chegou a altura do já conhecido e experiente Mac DeMarco subir ao Seat, o recinto estava povoado por muitos curiosos que iam saltando de palco para palco para aproveitarem a experiência de tanta música diferente, e também dos que se estabeleceram para ouvir o canadiano atuar.
Sempre fiel à sua maneira de ser e de se apresentar, Mac deu mais uma vez uma mostra do seu talento e mestria a conquistar públicos por onde quer que vá. Um artista humilde que podia facilmente ser reconhecido a relaxar e a aproveitar durante a hora dos outros concertos, mas que neste momento tinha apenas um foco e era o de entreter os presentes.
Apresentou o seu mais recente “Here Comes The Cowboy”, enquanto também navegou pela sua discografia para trazer aquelas canções que avivam memórias. Uma abertura dos maiores muito bem-recebida nesta festa.
Um pouco antes, já Danny Brown tinha trazido as suas letras mais conhecidas e proeminentes ao Ray-Ban. Colocou a plateia a mexer com batidas agressivas e um Hip Hop fora do comum.
Coube à artista norte-americana Clairo demonstrar mais do talento dos artistas abaixo dos 21 anos presentes no cartaz, ao tomar conta do palco Pitchfork para trazer a sua música pop que a tornou famosa por entre a internet.
De seguida, Courtney Barnett, a australiana que tem vindo a chamar à atenção pela sua expressão peculiar e talento único, ocupou outro dos maiores palcos, o Pull&Bear. Numa atuação onde o tempo fluiu ao som da sua guitarra, que se elevou ao acompanhamento de bateria e baixo, a cantora foi retirando vários aplausos do público enquanto este ia apreciando o seu rock.
Ainda decorria o concerto anteriormente mencionado quando o rapper Nas, para a maioria uma das peças mais importantes da história do hip hop americano, pisou o Ray-Ban e trouxe batidas conhecidas pela plateia com letras que traçam contos das ruas de Nova Iorque. Facilmente foi bem acolhido em Barcelona, pela história que conta e pelo percurso percorrido até ali. Muitos braços e cabeças abanaram por entre todos, criando assim um ambiente amigável nesta festa de hip hop.
Seguia-se uma das bandas mais esperadas, os norte-americanos Interpol. Muitos aguardaram para assistir à apresentação do grupo, que no seu ambiente indie rock, presenteou-os com uma viagem pelos clássicos da discografia. Por entre os seus álbuns e os vários instrumentos harmonizados, esta viagem levou consigo todos os fãs e curiosos, que se deixaram levar e usufruir.
Tanto passaram pelo seu mais recente “Marauder”, lançado em 2018, como foram buscar faixas a projetos mais antigos e conhecidos, como “Turn on the Bright Lights”, de 2002, e “Antics”, lançado dois anos depois deste último. O público mostrou-se conhecedor destes mais clássicos, e ajudou muito a esta festa iluminada, enquanto a noite já tinha caído.
Já estava tudo montado para que no palco Pull&Bear se continuasse num momento mais espiritual, dedicado a vários géneros como o soul, o r&b, o hip hop, o funk, e dirigido pela versátil Erykah Badu. Um espetáculo cautelosamente apresentado, em que a artista natural de Dallas convidou o público a vários atos, em que se refletiu, relaxou mas também se festejou a música, enquanto esta entoou várias das canções que marcaram a sua carreira, deslocando na bagagem o álbum de estreia que a lançou “Baduizm”, de 1997, “Worldwide Underground”, de 2003, entre outros e entre covers de Outkast e Todd Rundgren. Foi uma das atuações que marcou esta edição do Primavera pela maneira transversal e inspiradora como foi levada.
Pela madrugada fora, a festa ia ficando mais mexida, e enquanto nomes como Princess Nokia, Gangsta Boo, Rico Nasty (três rappers eminentes pelas suas caraterísticas particular dentro da cena do hip hop norte-americano) e SOPHIE (a talentosa artista experimental britânica, conhecida por colaborações com Madonna, Vince Staples, Flume, entre outro) subiam aos palcos pelo Parc fora, chegava a altura de mais um dos grandes se encher para celebrar em conjunto com Charli XCX.
A cantora natural de Cambridge tem vindo a construir uma carreira consistente e a conquistar admiração tanto dos fãs da sua música pop com uma aproximação mais experimental como da crítica. Por isso, também era enorme a plateia que a esperava em Barcelona para dançar e sentir ao som dos seus “hits”. Por entre vários sucessos como “Boys”, “I Love It”, cover da dupla Icona Pop, “Focus” e “1999”, Charli entreteu os presentes numa festa eletrizante e convidativa.
Quem prometia tomar a maior atenção de seguida seria FKA Twigs. No palco Ray-Ban virou para si grande parte dos olhos, enquanto apresentou uma cena teatral e apelativa, num palco decorado à sua medida. Por entre vários momentos de interpretação e dança, Twigs fez render o tempo e cativou todos acompanhando-se pelos seus sucessos musicais dos seus mais variados projetos. Um espetáculo que dificilmente foi marcado apenas por um r&b eletrónico e alternativo, mas que também demonstrou os vários talentos da artista britânica. A noite ia passando, e este concerto ia-se cravando na memória de todos.
Para fechar em grande o primeiro dia, Nina Kraviz, a respeitada DJ de Techno, deu música aos que sobreviveram até ao final. Sempre fiel à sua sonoridade, apresentou duas horas de festividade, com muito baile e movimento à mistura.
A abrir as hostes dos maiores palcos no segundo dia esteve Carly Rae Jepsen, a tão famosa cantora canadiana, que assegurou uma atuação cheia de divertimento e sucessos. Veio do Canadá com o recém-lançado “Dedicated”, mas obviamente abriu espaço para outras das suas canções mais ouvidas, especialmente do antecessor “E•MO•TION”, lançado em 2015. Atravessou junto à plateia para trazer a harmonia para junto de todos, criando assim uma atmosfera festiva onde todos se moveram e admiraram. Estavam assim todos convidados para mais uma noite bem passada.
Depois do êxito que foi o álbum de 2018 “Dirty Computer”, não foi admirável o número gigante de pessoas que se juntou para receber Janelle Monáe. Visitou esse álbum durante o espetáculo todo, dando uma atuação viciante e provocadora, que se mostrou eficaz. O público mostrou-se conhecedor ao entoar em conjunto com a cantora, que retribuiu ao chamar vários fãs ao palco para dançarem com ela. Muito bem assistida por banda e dançarinas que percorreram todo o palco e deram vida às suas canções, enquanto a norte-americana demonstrava o seu dom imenso.
O momento que chegava a seguir era muito antecipado: Miley Cyrus subia ao palco Seat para apresentar e lançar oficialmente o seu EP “She Is Coming”. A cantora exibiu todo o seu crescimento e desenvolvimento desde que foi a menina do country e do Disney Chanel, as alturas mais conturbadas até a este projeto. Para além do último, também teve lugar para os seus maiores êxitos, como “Party in the USA”, “Wrecking Ball” e “Malibu”, num cenário de concerto rock, onde ela própria se deixou envolver pelo tema para se afastar dos estilos que mais rapidamente lhe são associados. Uma enchente acompanhou-a, deixando escapar todas as emoções por uma artista que a maioria viu crescer na indústria.
Os já afamados australianos Tame Impala aterraram no palco Pull&Bear para a atuação subsequente. Demarcados pelo seu rock psicadélico, deixaram-se levar neste tema para trazer para todos uma atuação colorida e arrojada, com um cenário simples mas cativante. O álbum que foi mais visitado foi “Currents”, o clássico de 2015 que foi muito bem recebido em Barcelona, tal como “Lonerism”, de 2012, abrindo assim uma festa de cantoria, dança e outras sensações ao ar-livre.
A sueca Robyn foi a que subiu após esta atuação ao palco Seat. Depois de em 2018 ter lançado “Honey” e ter recebido forte aclamação por parte da crítica, também não foi de admirar que muito do público presente no Primavera se unisse para a receber e assistir ao vivo. O concerto foi-se criando pelas faixas deste último álbum, e por outros sucessos de Robin Carlsson, o nome de nascimento da cantora e produtora, baseado em melodias fascinantes e batidas convidativas para mais uma vez tirar os pés do chão e deixar-se rodear pela experiência desenvolvida.
Entrava-se no final da noite quando Mura Masa se exibiu no palco Ray Ban. O produtor nascido na ilha de Guernsey brilhou em palco com acompanhamento de voz, onde ele foi tudo o resto. Alinhou as batidas com alguns samples ou melodias feitas por si, ajudando a continuar esta festa que estava a ser o Primavera Sound. Muita gente cantou junto com ele, enquanto tocava os maiores sucessos, como “Complicated” e “Love$ick” , e estava assentada a ambiência que se imaginava numa atuação do britânico: o mundo urbano a ser celebrado por quem vive nele.
Diretamente da Coreia do Sul, a produtora e DJ Peggy Gou chegou para dar mais vida às festividades do dia 31 e ao mesmo tempo ameniza-las. No seu estilo house, com ritmos acentuados e harmonias hipnotizantes, abriu uma pista de dança a céu aberto inigualável, onde não houve corpos quietos nem indiferentes. Estava a chegar assim o segundo dia ao fim, enquanto se desejava que a festa durasse para sempre.
Chegado o terceiro e último dia de festival, as boas vibrações e a celebração dos valores no Parc Del Fórum já estavam mais alastradas que nunca. O Dia Mundial da Criança recebeu também famílias inteiras para assistirem a um dia de concertos que celebravam toda a cultura e todo o Novo Normal que está positivamente a tomar esta indústria.
Ainda brilhava o sol quando Boy Pablo, o grupo norueguês encabeçado por Nicolas Pablo Munõz de apenas 19 anos e com ascendência chilena, assumiu o palco Seat para revelarem o método musical que os fez cair na internet até tornarem virais e chegarem até Barcelona. No seu género alternativo, viajaram pelos dois EPs, “Roy Pablo” e “Soy Pablo”, passando pelo maior sucesso “Everytime”, esse mesmo que agitou o YouTube e atingiu um número de visualizações surpreendente.
A atuação que se seguia era ansiada por muitos, sendo que se tratava da jovem cantora argentina emigrada em Espanha Nathy Peluso. Apresentando-se com inspirações no hip hop, jazz, soul, entre outros géneros, foi com facilidade que atraiu as atenções. A garra que a carateriza, a firmeza com que agarra o microfone e os passos de dança cativantes com que brindou o público foram suficientes para manter as atenções até ao final.
A música foi continuando a ser tocada no enorme recinto do festival, com concertos para servir a todos os gostos e curiosidades, chegando assim a vez da colombiana Kali Uchis brilhar. A cantora que tem vindo a dominar os gostos de artistas do norte do continente americano e também da Europa, veio à Catalunha em espanhol mas para nos apresentar os seus “Body Language”, de 2018, e “Por Vida”, de 2015. Num espetáculo muito ao estilo burlesco, Kali rapidamente seduziu os olhares em Barcelona, acumulando um conjunto vasto de fãs para a aplaudirem e acompanharem. Entoaram-se as suas canções que percorrem influências de r&b, soul, jazz, reggaeton e outros géneros musicais, e sentiu-se a emoção do público que a esperou na sua estreia em Espanha.
Eis que chegou o que para muitos provavelmente era o mais ansiado daquela noite: Rosalía. A artista natural de Barcelona é muito mais do que uma conterrânea para quem como ela nasceu lá. É cada vez mais um símbolo cultural, e eles exibem-no com muito orgulho. A espanhola que vai tomando conta do mundo da música aos poucos prometia dar um espetáculo do tamanho dos “grandes”. E ela foi recebida como ainda maior que grande. O seu álbum mais recente “El Mal Querer” ainda ecoa nas ruas da cidade, e no festival várias foram as canções entoadas quase em uníssono, a acompanhar a voz infalível da cantora. Naturalmente, a mesma emocionou-se a certa altura porque nenhum concerto para ela deve ser como aquele, que no dia seguinte fez capa em vários jornais espanhóis. Notou-se que no palco estava programado para correr como correu, com El Guincho a liderar bem a banda e dançarinos a acompanhar toda a genica de Rosalía, que se movia em quanto a voz permanecia sem falhas. E é assim que alguém que anda a viajar e a deixar a sua marca pelo mundo fora deve voltar à terra natal, com uma atuação exemplar e de deixar muitos queixos no chão do recinto.
A correria começou ao terminar o concerto da espanhola para toda a gente conseguir um bom lugar para assistir o espetáculo de Solange. A cantora norte-americana também montou um teatro daqueles que não se veem todos os dias. Tudo bem orquestrado, com movimentos incertos mas cautelosamente ensaiados, coisa que nem o facto da escuta da mulher principal falhar conseguiu abalar. Mas naquela cena não houve muito espaço para personagens principais ou secundários. Toda a gente teve o seu papel importante, desde os instrumentalistas até aos dançarinos, e construíram assim uma atuação que mereceu toda a ovação recebida. Solange Knowles mostrou a sua voz, enquanto todos em seu redor davam também exemplos dos seus talentos. Enquanto ela descia do palco para interagir com os fãs, tudo continuava a soar de uma forma divinal, e foi daqueles em que se desejava que não terminasse.
Mas terminou, e voltava-se ao ambiente festivo quando grande parte dos festivaleiros se reuniram para continuar a celebrar a língua espanhola pelo mundo fora e, neste caso, o reggaeton. J Balvin foi outro dos artistas muito bem acolhidos em Barcelona, com um espetáculo colorido e temático montado. O tema principal aqui, para além do seu sucesso a conquistar os cantos do planeta, foi o seu álbum de 2018 “Vibras”, outro que combinou aclamação crítica e pública. Mais uma vez, tinha uma multidão para assistir, e mais uma vez isso não surpreendeu ninguém. Os ritmos latinos envolvidos com muitas outras influências e apresentados nos dias de hoje abanam cada vez mais o panorama, e ali viu-se exemplo disse. J Balvin fez o recinto dançar e o dançou com J Balvin.
E talentos como a rapper Tierra Whack, Primal Scream e muitos mais tinham figurado noutros palcos quando James Blake calou o recinto para que o recebessem num silêncio calma. Porque a sua música pede mesmo isso. O inglês manipula o silêncio para lhe dar mais vida e contar bonitas histórias entre piano e a sua voz melódica. Foi um momento intimista, em que ele e os instrumentos falaram diretamente para o público, numa autêntica conversa em que houve comunicação entre ambas as partes. O público respondia tanto com silêncio como com barulho, mas nada abafava as notas do talento de James Blake. Um artista singular, a mostrar-se merecedor de todas as excelentes críticas que tem vindo a receber nesta última década pelos seus 4 álbuns. Foi uma forma mais que correta para iniciar o término de mais uma edição de Primavera Sound.
Mas eis que ainda faltavam mais momentos únicos. Especialmente dois rappers que foram, horas antes, vistos juntos com o artista anteriormente falado e que iriam pisar dois palcos diferentes um a seguir ao outro. E esses dois rappers são o norte-americano JPEGMAFIA e o inglês Slowthai.
O primeiro foi visto minutos antes no palco Adidas Originals a fazer o seu soundcheck como se se tratasse de outro técnico qualquer e não do artista que fez tremer o submundo do hip hop, deixando inclusive marcas no panorama mais mainstream. Trouxe “Veteran”, o seu último lançamento, mas o instante que se seguia não se focou em nenhum projeto em particular. Focou-se sim na forma como o artista sozinho e energético domou o palco e entreteve o público, juntando-se a ele em diversas ocasiões. Com uma força mais que viciante, o norte-americano deixou a sua marca no festival e nas memórias de quem esteve presente em tal festim, onde houve lugar para gritar, dançar mas também sentar e viver um momento calmo.
Logo depois, via-se o mesmo JPEGMAFIA na lateral do palco Pitchfork, onde desta vez era Slowthai a brilhar. O seu “Nothing Great About Britain” está fresquinho e acabadinho de sair, e o rapper que fez sucesso na internet fez questão de lhe dar a apresentação merecida. Entre saídas e regressos, interações com o público e momentos de euforia, Tyron Frampton (nome verdadeiro do rapper) percorreu um lado ao outro do cenário para trazer a realidade do Reino Unido em tempos de Brexit vista pelos seus olhos.
E era assim que chegava ao fim mais um Primavera Sound Barcelona, ainda antes com o anúncio de que se iria estender até Los Angeles no próximo ano e ainda com outro local por desvendar. A mensagem e os valores exemplares foram satisfatoriamente transmitidos, abrindo assim a porta para que outros festivais marquem a diferença e ajudem a melhorar a qualidade da indústria musical e do mundo inteiro. Uma experiência cansativa mas positiva e que será dificilmente esquecida por quem a viveu.
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quarta-feira, 12 junho 2019