Reportagem Kamasi Washington no Porto
Kamasi Washington é um músico de jazz, mas a verdade é que dá concertos de rock. Estranho? Só em teoria. Neste regresso a Portugal, o saxofonista norte-americano instalou um ambiente de festa contagiante, atuando para uma audiência que nunca deixou de o aplaudir, que nunca parou de dançar ou de, a pedido da própria banda, fazer barulho - “make some noise” foi, a certa altura, a ordem emitida, e cumpriu-se, sem falhas.
É assim a experiência que Kamasi proporciona quando sobe ao palco, desta vez o do Hard Club, perante um público que, para além de o receber de braços abertos, encheu a Sala 1 do Mercado Ferreira Borges. Tal cenário não é de admirar se tivermos em conta o fenómeno de popularidade no qual já se tornou, estatuto atingido graças a um simples fator: a qualidade do seu trabalho. Muito se tem dito (e escrito) sobre o papel crucial que Kamasi tem tido na revitalização do jazz, no sentido de conquistar uma audiência que vai muito além do estilo onde se insere; para isso muito contribui não só a colaboração com o rapper Kendrick Lamar no aclamado To Pimp a Butterfly, como também o caráter único do jazz que pratica, ainda que o mesmo evoque o riquíssimo legado do género. No entanto, mesmo com essas referências, há algo de especial nas composições deste senhor: soam quentes, acolhedoras, revelam-se complexas e brilhantes mas simultaneamente acessíveis, e revestem-se de um curioso toque urbano que faz com que pareçam saídas das ruas do mundo. Acima de tudo, destroem aquela ideia que o jazz só pode, ou deve, ser apreciado por quem o entende a nível técnico – que se trata de arte feita por músicos para outros músicos, basicamente. Olhando à nossa volta, de tudo víamos, desde adultos a jovens; eram todos exímios conhecedores de jazz? Provavelmente não; mas eram, isso sim, admiradores DESTE jazz, e nada mais importava.
Com algum atraso (a fila para entrar na sala começava no pátio exterior do Hard Club), Kamasi e a maravilhosa banda que o acompanha subiram ao palco ao som de “Street Fighter Mas”, e logo aí sentimos uma energia dentro da sala realmente impressionante – lembram-se de termos dito que isto era um concerto de rock com músicas de jazz? Neste momento, essa teoria fez todo o sentido.
Contudo, há muito mais na performance deste carismático bandleader para além de emoção e sublimes explorações sonoras. Há também o lado espiritual de Kamasi, já bem visível na maneira intensa com que se expressa através do saxofone, e nesta noite presente nas palavras que tão amavelmente proferiu, num esforço consciente para ser o melhor anfitrião desta visita coletiva ao seu esplêndido universo. A certa altura, explica que a diversidade não é algo para ser tolerado, mas sim celebrado, brindando-nos com “Truth”, retirada de Harmony of Difference; tudo simbólico, tudo dito com uma paixão pura sentida em cada palavra do discurso. Mais do que um mero artista, mais do que um simples frontman, Kamasi provou que também consegue ser um orador eloquente, espalhando verdades que, infelizmente, quando observamos o mundo que nos rodeia, parecem estar a ser ignoradas – o porquê não sabemos.
União e harmonia são, de resto, conceitos que este talentoso instrumentista nascido em Los Angeles segue fielmente: para além de contar com o pai, Rickey Washington, como convidado (no papel de flautista), parece manter uma relação praticamente fraternal com os restantes músicos, como se quisesse, e sentisse necessidade, de enfatizar o quão importantes estes são. Kamasi pode ser o “ator” principal neste “filme” – e efetivamente é nele que as nossas atenções se focam - mas todos desempenham papéis fundamentais, formando uma máquina bem oleada que produz algum do melhor, mais excitante e mais criativo jazz da atualidade. Kamasi sabe-o, e por isso não tem qualquer problema em dividir protagonismo: fê-lo quando interpretou “Abraham”, da autoria do seu contrabaixista Miles Mosley, ou quando entregou brevemente o espetáculo aos seus dois bateristas para um duplo solo de bateria.
Poderá parecer, ao ler o texto até aqui, que tudo foi perfeito, mas as memórias do anterior concerto na Invita - essa maravilhosa atuação na Casa da Música, em 2016 - impedem-nos de ver assim as coisas. Foi memorável? Sem dúvida. Mas faltou o ambiente ideal que a Sala Suggia oferece para este tipo de concerto, com as cadeiras onde nos podemos sentar e saborear melhor a beleza destes sons, não esquecendo a acústica magnífica do espaço (ainda que o Hard Club tenha estado bem nesse departamento).
Pormenores pequenos, insignificantes para alguns? Talvez, mas a verdade é que acabam por influenciar a experiência final, pelo que escolhemos recordar essa passagem com um pouco mais de carinho. Por outro lado, Kamasi é Kamasi, e vê-lo ao vivo, seja onde for, é sempre sinónimo de tempo muito bem passado. Com “Fists of Fury” despediu-se; não houve encore (o que foi uma pena), mas as (boas) lembranças deste serão permanecerão gravadas na nossa mente… e nos nossos corações.
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quinta-feira, 16 maio 2019