Reportagem Mão Morta no Porto
Belo foi o cenário no qual os bracarenses Mão Morta atuaram no sábado passado, subindo ao palco de um Hard Club cheio e imbuído de um soberbo clima de entusiasmo impossível de ignorar: sentia-se “magia” no ar, aquela sensação de que algo especial ia ter lugar… outra coisa não se esperava, aliás, na noite de apresentação do novo disco.
No Fim Era o Frio, assim se intitula a referida obra de um grupo que sempre soube combater a estagnação para partir livremente em busca da reinvenção, explorando novas ideias sem perder a personalidade bem vincada que o define. Desta vez a narrativa foi construída a partir de módulos, com a banda a dar um mergulho profundo no mundo da eletrónica, por vezes de forte inspiração krautrock, para criar uma obra complexa, densa e pautada por uma palpável tensão infinita, uma tensão que nos invade o corpo, que nos penetra a alma, uma tensão tão arrepiante quanto viciante.
De tão emocionalmente intenso que o álbum é, os Mão Morta decidiram dividir o espetáculo em duas partes e usar a primeira para interpretá-lo de fio a pavio. Uma decisão que prova o quão confiantes se sentem em relação à qualidade e relevância da sua mais recente criação artística, e uma decisão que faz todo o sentido a nível teórico, ainda para mais tendo em conta que o disco funciona como um todo; na prática, contudo, os resultados variaram.
Não há dúvida de que se tratou de uma iniciativa bastante curiosa, mas sendo o álbum de tal forma desafiante e exigente, sentimos que a própria banda está ainda a conhecê-lo, a atravessar esse inevitável, e nunca fácil, processo de adaptação, a aprender a conviver com ele agora que o levam do conforto do estúdio para os palcos do nosso país. Se a execução, de uma perspetiva puramente técnica, foi claramente forte, a postura revelou um ligeiro desconforto, como se não estivessem totalmente seguros de como a experiência ia correr, ainda que sentissem ser crucial embarcar nesta aventura. Não os culpamos – essas dúvidas, essas incertezas, são perfeitamente naturais -, mas também não podemos dizer (com muita pena nossa, acreditem, pois muita admiração por eles nutrimos) que tudo tenha sido perfeito.
O que podemos dizer, no entanto, é que não deixou de ser deveras interessante e mesmo inspirador testemunhar a coragem com que levaram a cabo esta experiência, até porque não são assim tantas as bandas, nacionais ou estrangeiras, que se desafiam a si próprias com tanta ousadia após atingirem estatuto de lendas, altura em que frequentemente acabam por perder a “fome” que as conduz inicialmente à grandeza; mas os Mão Morta não são uma banda qualquer e continuam a sentir que têm algo a provar: que não são prisioneiros do seu próprio passado glorioso e que usam o presente como um precioso cenário para a criação de um futuro risonho. Como anteriormente afirmamos, a estagnação, para eles, não é uma opção, é uma sentença.
Finalizada a primeira parte do concerto, seguiu-se uma pausa, como se o fim do primeiro ato de uma ópera ou peça de teatro se tratasse… e, no fundo, não estamos assim tão longe da verdade: há um lado de encenação inegável em qualquer atuação dos Mão Morta, sobretudo ao observarmos a postura do vocalista/contador de histórias Adolfo Luxúria Canibal, essa carismática figura que tem tanto de fascinante quanto de enigmática, que consegue, quase de forma mágica, conquistar a nossa atenção do início ao fim, deixando-nos maravilhados com a sua eloquência e o seu charme, e que também nos faz questionar o quanto que dele vemos em palco é uma personagem consciente da sua dramatização e o quanto é simplesmente ele próprio, um ser humano como os outros que nós escolhemos endeusar; todavia, reside aí muito do seu encanto, e será certamente melhor permanecer na dúvida do que sermos confrontados com a verdade.
Quando regressaram ao palco, já com um cenário novo desenvolvido pela Oficina Arara, os Mão Morta arrancaram com “Pássaros a Esvoaçar”, passando assim do presente para o passado e misturando os dois para fazer desta noite uma íntima viagem a todas as eras da sua ilustre carreira, numa análise do que um dia foram e do que hoje são.
“ Hipótese de Suicídio” (tema pesado e poderoso que resulta bem ao vivo e poderá até ser um futuro clássico da banda), “ Tu Disseste” (sempre sedutora e inebriante, tão bom saboreá-la), “Vamos Fugir”, “ E Se Depois” (um dos mais memoráveis momentos desta prestação), “1ºde Novembro” e, já a servir de encore, a antiguinha “Budapeste” foram algumas das composições escutadas na segunda metade desta performance extremamente competente mas que, ainda assim, pareceu-nos desprovida de muita da visceralidade emocional (e mesmo instrumental, o som encontrava-se um pouco baixo) que normalmente associamos ao grupo.
Que fique bem claro, no entanto, que os Mão Morta muita dificuldade têm em dar maus concertos e que este, mesmo com algumas “falhas”, foi bem acima da média. Apenas sentimos que faltou ali uma maior coesão (que certamente estará presente nas próximas atuações) e talvez temas mais “crus” e pesados como “Anarquista Duval”, “ Berlim (Morreu A Nove) “ ou “Cão da Morte” no alinhamento. Todavia, ainda conseguiram protagonizar um concerto indiscutivelmente agradável, precisam apenas de tempo para se habituarem às novas composições, a esta nova realidade.
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quinta-feira, 03 outubro 2019