Entrevista Scúru Fichádu
Um projeto único, excitante e prova irrefutável do quão rico e diverso o panorama nacional realmente é. Filho de imigrantes africanos- a mãe é angolana, o pai cabo-verdiano-, Marcus Veiga (ou Sette Sujidade, como normalmente se refere a si próprio) pegou no legado das suas origens-essencialmente naquele deixado pelo funaná- e misturou-o, à sua maneira, com o punk, o metal e hip-hop que mais tarde descobriu. O resultado é um produto vibrante, dinâmico, incrivelmente apaixonante e inegavelmente original- Atari Teenage Riot de Cabo Verde, como o próprio nos confessou. Aquando da mais recente passagem pelo Maus Hábitos, no âmbito do evento O Salgado Faz Anos… FEST, fomos falar com o homem por trás do projeto para sabermos o que o motiva e inspira, a importância da política na vida e na arte, como foi crescer entre dois mundos e muito, muito mais. Senhoras e senhores, Marcus Veiga sem filtros, a revelar tudo o que lhe vai na alma.
Vamos começar por falar do disco que acabas de lançar, intitulado Un Kuza Runhu. Que diferenças sentes que existem entre o álbum e o EP com o qual te apresentaste ao mundo em 2016?
Bom, o EP era uma "pasta" sonora bastante estranha, bem crua… toquei muito graças a ele, mas fui tudo muito ingénuo a nível de composição, muito raw e punk. Com este disco não tentei poli-lo necessariamente, o conceito permanece lá, com todas aquelas camadas densas, mas quis também dar espaço para a mensagem, pelo que tornei os instrumentais ligeiramente mais acessíveis e respiráveis sem alterar a fórmula. No fundo, a palavra certa para descrever o disco é refinado - até certo ponto.
Curiosamente, uma das coisas que notei foi como o resultado final soa "sujo",quase como uma tentativa de conservar o espírito underground que caracteriza o projeto…
Sem dúvida. Usei, aliás, as mesmas ferramentas do EP- gravei tudo em casa, com um microfone fraquito e um computador com memória bué da má (risos). Sabes, eu valorizo essa maneira ingénua e amadora de fazer as coisas, é por onde caminho, por onde escolho mover-me: fascina-me toda essa cena lo-fi, o ato de fazeres muito com pouco; pelo menos para mim, é a minha zona de conforto. Se calhar no futuro as coisas mudarão, poderei aprender a tocar um instrumento ou algo do género, mas por agora curto fazer assim as coisas… keep it simple and stupid (risos). Seja como for, está a dar frutos, estou aqui a falar contigo, a tocar cá e lá fora…
Vais até atuar no Roskilde, na Dinamarca…
Certo! Eu já há ano e meio que trabalho com um agente francês e tenho vários bookers na Europa a colaborar comigo, e isso acaba por fazer com que a minha música chegue um pouco a todos os cantos sem que tenha de ter estudado num conservatório ou assim- se bem que também há espaço para isso. Acredito, contudo, que o conceito do meu projeto, do que faço enquanto Scúru Fichádu, seja universal; não precisas de saber falar crioulo para perceberes o que está ali a ser tratado, é uma cena muito física. Não tenho de dominar a cena dos acordes ou aperfeiçoar as mixagens – tu levas com a atitude, isso é o essencial, e é isso que passo aos elementos que me acompanham ao vivo: digo-lhes logo que não quero saber se eles estudaram num conservatório, o que me interessa aqui é mesmo a atitude, a garra.
Faz todo o sentido, até porque já disseste que a música que fazes é para ser tocada ao vivo…
Sim, é inegavelmente feita para ganhar outra dimensão nesse contexto. Claro, se a ouvires em casa sinto-me lisonjeado, ainda que não deixe de ser estranho já que sempre vi isso como algo que só acontece aos outros (risos). Mas, sim, a música que crio nasceu para ser tocada ao vivo, enfatizo esse lado performativo.
"O que eu abordo, mesmo que em crioulo, são problemas urgentes que têm de ser debatidos, não podemos ignorá-los. Temos de preparar o caminho para os nossos filhos e isso passa não só por discutir assuntos importantes, mas também por fazê-lo de forma responsável"
Referiste há pouco que a mensagem que passas tem impacto mesmo que cantada em crioulo; ainda assim, podias discutir mais detalhadamente o conteúdo lírico das tuas músicas?
Bem, isto é um disco de combate e de protesto que vai de encontro ao ambiente social do momento, ao que está a acontecer agora. Sinto que ultimamente há bandas a tocar muito bem, mas está-se a falar pouco do que é realmente necessário; há tanto assunto que tem de ser abordado e que não o está a ser…
Sentes, portanto, que a música, para além de expressão artística, deve ter igualmente um lado político…
Completamente! Há pessoal que diz que não liga a política e tal, mas isso por si só já é um ato político… a política faz parte das nossas vidas, da nossa natureza, a verdade é essa. O que eu abordo, mesmo que em crioulo, são problemas urgentes que têm de ser debatidos, não podemos ignorá-los. Temos de preparar o caminho para os nossos filhos e isso passa não só por discutir assuntos importantes, mas também por fazê-lo de forma responsável. Eu não posso escrever uma canção em que diga "vou matar toda a gente que me apetecer”, porque sei que se dez acham piada, um vai pensar "espera lá, ele tem razão" e depois algo horrível acontece. É como a polémica que envolveu o Marilyn Manson na altura da tragédia de Columbine: nada na mensagem dele encorajava esse tipo de ação, mas uns miúdos que não tinham atenção em casa por parte dos pais, que sofriam de bullying, fizeram o que fizeram… enfim, há muito boa música a ser produzida hoje, mas pouca que passe uma mensagem política e social cuidada.
Contudo, isso é essencialmente culpa da indústria que apadrinha maus exemplos que se calhar fazem com que as novas gerações fiquem mais preguiçosas e não queiram procurar, estudar, ter objetivos concretos… eu sou contra isso e quero fazer algo para mudar a situação. Tudo bem que as letras estão em crioulo, mas sempre que dou uma entrevista, o pessoal percebe onde eu me situo.
Tens algo a dizer, no fundo…
Sim, tenho algo a dizer… e senti igualmente a necessidade de traduzir a minha mensagem, daí que as letras estejam disponíveis online em português, em inglês, para que as pessoas as possam ler e debatê-las comigo.
Falando ainda da questão das letras e da mensagem, como olhas para uma situação como a do Luís Giovani dos Santos Rodrigues, cabo-verdiano que foi espancado até à morte nas ruas de Bragança? Como é que isso influencia a tua escrita?
Na verdade é um tema que eu já trato, de situações que podem dar origem a casos como esse. A situação desse jovem é de lamentar, é horrível, e ainda por cima num fim-de-semana anterior foi também assassinado um rapaz em Lisboa … eu estive numa manifestação em que se chorou o destino dos dois miúdos, não se está aqui a escolher lados e é isto que os media têm de entender: não é uma questão de brancos e negros- nada de supremacias, não queremos isso-, mas sim de igualdade, tratar todos da mesma forma. Agora, todo esse discurso policial, de pôr a opinião pública do lado deles… "ah eles eram bandidos, aquele roubou um telemóvel por isso corta-se-lhe o braço"- não, não é assim, se roubou um telemóvel tem de pagar pelo crime como todos os outros, de forma justa.
De qualquer forma, eu acredito cada vez mais - e isto sou eu a falar como o “Sette Sujidade ”-que as comunidades mais pequenas precisam de um mecanismo de autodefesa, porque a polícia não está a ajudar- muito pelo contrário, está a ser cada vez mais repressiva, a manipular a opinião pública para que nós não possamos dar um passo e tropeçar porque senão temos logo culpa… E quando digo nós, não falo apenas dos cabo-verdianos ou angolanos, refiro-me à comunidade social dos bairros e periferias em Lisboa onde brancos, ciganos ou negros vivem todos nas mesmas condições; temos de ter o direito à autodefesa que, atenção, não significa violência, não é isso que estou a propor, mas temos de nos proteger…
Aliás, um dos samples numa das tuas músicas diz: "I'm not standing for violence, but I do stand for self-defense."
Exatamente! Quem diz essa frase é o Huey P. Newton, o falecido cofundador dos Black Panthers (Panteras Negras). Eles são conhecidos pelos óculos escuros e as shotguns, mas algumas das coisas que faziam- como o pequeno -almoço para crianças carenciadas, que deu origem ao SASE -, isso faz falta e é algo que pode partir da própria comunidade, é nesse sentido que falo de autodefesa, autogestão, autodeterminação… não precisa de partir de um lugar de combate, há advogados que conseguem defender os habitantes desses bairros, há pessoas que percebem de leis… devemos ajudar-nos uns aos outros e lutar contra a opinião pública pois esta está cada vez mais manipulada e banalizada. Eu lembro-me que o meu pai, nos anos 80, tinha uma opinião muito mais desenvolvida sobre os assuntos; quando votava, não era porque ouvia um gajo qualquer a dizer umas coisas -informava-se, comprava o jornal e perdia algum tempo a lê-lo de forma a absorver a informação. Agora com as redes sociais está tudo facilitado: fazes scroll, vês um post com meia dúzia de chavões e se não fores muito atrás da informação concreta, das causas e consequências, acabas por criar um monstrinho… é daí que nasce o populismo, que é agora o maior inimigo social. É isto que eu abordo, resumindo, ao longo de todo o disco.
"No fundo, eu estava à procura de modelos, de "espelhos" no qual me pudesse olhar"
Cresceste constantemente entre dois mundos, não só no que à nacionalidade diz respeito- em Portugal eras visto como cabo-verdiano, em Cabo Verde como um "tuga"-, mas também a nível musical: os teus primos, por exemplo, não compreendiam como podias ouvir uma banda como os Sepultura, e o público dos concertos hardcore olhava para ti com estranheza. A nível psicológico, ser esta espécie de "outsider" gerava sentimentos de confusão e alienação ou sempre te orgulhaste da tua individualidade?
Bem, não digo que me sentisse mal, mas às vezes não sabia o que fazer. Obviamente que não imaginava que um dia ia dedicar-me à música, mas sentia falta de ter alguém, uma espécie de cara-metade com quem partilhasse não só a cor da pele, como os mesmos gostos. Tinha um pé na comunidade africana, mas também passava tempo com os meus colegas que ouviam Pantera ou Sepultura e havia sempre essa dualidade, gostava de certas coisas e ouvia outras em casa. Admito que, por um lado, também tinha um pouco de vergonha, quando era mais novo e ia para a rua, de dizer que ouvia música africana, mas ao mesmo tempo se os meus primos vissem a minha cassete onde se encontravam cenas de Anthrax ou Sepultura, diziam logo que eu estava a dar para branco (risos). Contudo, às tantas agora já compreendem melhor, até porque o rock, o metal, tudo isso veio do blues, que era feito e interpretado por comunidades africanas… De certa forma, eu sempre ouvi música na minha adolescência numa busca constante por um objetivo, por encontrar alguém com as mesmas ideias que eu.
Pois, e se calhar isso é que era difícil: não estavas a fazer nada de errado, mas eras incompreendido por aqueles que te rodeavam…
Exatamente. Eu comecei no universo do hip-hop, já a frequentar bastante Lisboa, e depois ganhei coragem para fazer coisas para lá desse universo de forma a poder dizer "este sou eu, esta é a minha cena.
Agora, o facto de nem toda a gente curtir isto, para mim, é válido, assim como há efetivamente muita malta da comunidade africana que nunca sequer ouviu falar de mim! Dou-te um exemplo: para a semana vou apresentar o disco em Lisboa (nota: o concerto teve lugar a 31 de Janeiro),onde contarei com a presença de duas bailarinas tradicionais cabo-verdianas que nunca tinham explorado o projeto anteriormente. São oriundas da Quinta da Princesa, que é um bairro bem degradado lá da Margem Sul, e são miúdas novas até, mas é uma realidade diferente e isto não chega lá, como é óbvio. Por outro lado, agora ficam a conhecer e se calhar vão espalhar a palavra.
No entanto, não posso esperar que o pessoal mais velho que ouve o funaná onde me inspiro entenda o que eu faço, é impensável sequer eu abordá-los com a minha música pois trata-se de uma geração mais conservadora e fechada. Contudo, eu gosto que assim seja: vou lá, aprendo e absorvo o legado do estilo e depois volto para o meu cantinho para fazer barulheira.
Estávamos aqui a falar dos Sepultura, pelo que aproveito para perguntar o quão importante foi para o teu crescimento musical, e mesmo pessoal, ver uma banda de metal a incorporar influências da música do seu país de origem, que é basicamente parecido com o que fazes em Scúru Fichádu…
Foi muito importante. Falamos de uma banda que me acompanhou na minha adolescência, era algo bem extremo. O black e o death metal não chegavam até mim, com a exceção de Cannibal Corpse ou Napalm Death, mas depois- e não desvalorizando a onda bem pesada de álbuns como o Beneath the Remains ou o Arise, que me puxou- veio um disco como o Roots, que foi o último trabalho com o Max e que teve muito impacto em mim: houve ali um despertar, digamos assim, e comecei a perceber que não havia… Não é vergonha, mas tu, na tua poltrona urbana, julgas sempre que as tribos estão abaixo de ti, que são uns ignorantes, pelo que eu pensava "porra, os gajos do metal vão fazer uma cena mesmo básica, com tambores"… enfim, eu era miúdo, não entendia que estava ali um núcleo, a razão de ser de um modo de vida, mas agora consigo voltar ao Roots e apreciá-lo, assim como consigo ver a cena dos Sepultura com outros olhos, sobretudo depois da entrada do Derrick Green, que é negro… no fundo, eu estava à procura de modelos, de “espelhos” no qual me pudesse olhar; Sepultura, Body Count, essas eram as referências…
Bad Brains também, não?
Bad Brains surgiu mais tarde. Primeiro vieram os Dead Kennedys, os Black Flag, os Circle Jerks e só depois os Bad Brains; quando olhei para a cara deles e para a cor da pele, foi mesmo uma enorme surpresa, aquele "oh meu Deus" espontâneo. Eu sempre vi a música como uma procura de referências- Sepultura teve impacto por causa do Derrick Green e toda a questão racial, Body Count também- e essas coisas, no meio do meu grupinho de amigos brancos, funcionavam como uma justificação para ser como sou. Não eram artistas que falavam de espadas e cenas desse género como se vê no folk metal ou em bandas como os Manowar, eram gajos que falavam de racismo a partir de uma base anglo-saxónica e isso para mim foi mesmo brutal, crucial para o meu crescimento.
Portanto, ter estes modelos foi indispensável …
Absolutamente! Sabes, eu sempre li muita banda desenhada, foi até isso que me inspirou a desenhar e a escrever, e na altura havia o Wolverine, o Spider- Man, isto na minha pré-adolescência, ainda à procura de referências. No entanto, lembro-me depois de uma série que deu na televisão, muito fria, grotesca e sanguinária, que era o Shaka Zulu, e de perguntar aos meus pais porque é que ele estava sempre mal disposto e porque é que matava todos os homens brancos que por ali passavam; eles respondiam que esses senhores- e isto foi na altura da colonização inglesa - queriam roubar-lhe as terras, e ele estava só a defendê-las, a proteger o seu território. Essa imagem ficou comigo ao ponto de ele se ter tornado um herói para mim…
E vai de encontro ao que estavas há pouco a falar sobre autodefesa…
Nem mais. Claro que o Shaka Zulu fez também coisas horríveis, isso não pode ser negado, mas representava uma ideia de anticolonialismo, e a mensagem que eu agora transmito também- o colonialismo é a cena mais violenta que existe, ponto final.
Há também uma diferença entre aculturação, que é algo bom e saudável, e apropriação cultural. Olhas para alguém como a Madonna – e eu devo ser o primeiro gajo a falar disto-, que vai buscar ali as batucadeiras de Cabo Verde só para mostrar que tem um lado exótico e tropical… se ela quisesse realmente ajudar, pagaria uma digressão a essas mulheres que tocam com ela, porque certamente que aquilo que a Madonna lhes está a pagar, não chega nem a um décimo do que ela paga ou pagaria a outros artistas. Acaba por ser uma prenda envenenada e isto sim, é uma apropriação cultural violenta. Além disso, tendo em conta que o meio é pequeno, às vezes são dez cães por um osso, portanto vamos com calma e evitemos entrar no espaço um do outro de forma agressiva.
Tens também pessoal que usa o crioulo de forma negativa: como está associado à comunidade cabo-verdiana, muitas vezes ligada a uma ideia de gueto, ao usares a língua já estás a dizer que és um gajo com alguma malandragem de rua, ou então que és um bad boy com o qual as miúdas querem andar, que "fazes a folha” a quem disser mal de ti… isso é usar o crioulo de forma pejorativa, quase como se fosse um adereço, uma mera imagem…
E é claramente prejudicial até para ti: tenho a certeza que algumas pessoas olham para as tuas tatuagens, para a forma como ages em palco, com toda aquela intensidade, e pensam que está ali um tipo possivelmente perigoso…
Sim, claro… comigo tudo é um "statement ”- o que visto, as tatuagens, não é diferente da malta que usa uma t-shirt da banda que gosta. Mas, sim, há ainda um estigma muito forte, sem dúvida.
Agora, é só pensarmos o seguinte: as tatuagens sempre estiveram bem mais associadas ao rock e afins, mas a verdade é que eu, na posição de alguém que contrata, se encontrasse um gajo que viesse para uma entrevista todo tatuado, pensaria que ele é um ótimo profissional porque teve coragem de aparecer assim, percebes?
Claro que sim. Podemos até ver, mesmo dentro da área da música onde também existem manifestações artísticas visíveis, a cultura queer, em que muitos dos músicos não têm problemas em exibir um visual mais arrojado porque confiam neles próprios…
Exato, e é bom haver essa liberdade, é esse o caminho. Quem vai fazer a primeira parte do concerto em Lisboa é, aliás, o Rodrigo Vaiapraia, que é fantástico!
Ia precisamente falar nisso: trata-se de um projeto bem distinto do teu tanto a nível musical como conceptual. É algo que valorizas, rodear-te de músicos diferentes mas que também têm algo a dizer?
Bastante…Antes de mais, cruzamo-nos várias vezes em festivais, como no caso do ZigurFest, e já me tinha apercebido que a música dele não é tanto de ouvir em casa, tal como a minha. Acho que ele é o futuro, basicamente: tem uma mensagem que quer passar, é uma pessoa que acredita profundamente nos seus ideais e eu revejo-me nisso. Já tive oportunidade de me sentar com ele algumas vezes e penso que esta união faz todo o sentido, apesar de termos sonoridades diferentes … e acho também que faremos mais datas juntos.
"O que eu faço não é funaná tradicional, é a minha interpretação pessoal da cena, sou eu a dizer que também pertenço aqui"
Há hipótese de alguma dessas datas ser no Porto? Pergunto porque as tuas atuações na Invicta nunca são em nome próprio.
É bem possível que este ano faça algo aqui no Maus Hábitos - não agora porque estamos no fest do Salgado-, mas algo assim mais íntimo, com uma banda a abrir. Seja como for, a verdade é que a minha carreira arrancou verdadeiramente no Porto, ao ponto de até poder dizer que vejo o Salgado como um embaixador não oficial de Scúru Fichádu, porque ele realmente apoiou-me imenso. Além disso, sempre fui muito bem recebido aqui e muitas das pessoas que aparecem estão ligadas a festivais: a partir daqui fui tocar ao Zigur, a Barrosselas, a Braga, ao Basqueiral… abriu-me mesmo muitas portas. A ver, acho que este é um ano perfeito para eu vir cá em nome próprio.
Isso seria ótimo. E por falar no teu concerto, planeias tocar ao vivo aqueles últimos dois temas do disco, bem mais próximos da tradição do funaná? E o que te levou a incluí-los no disco?
Aqui não, vou optar por um alinhamento mais virado para a festa porque estou a guardar esses temas para a minha apresentação em Lisboa. No entanto, a ideia é depois vir cá com o álbum na íntegra.
Ainda a esse respeito, isto é uma tentativa urgente de aproximação à cultura cabo-verdiana, até porque muitas vezes fui acusado de desrespeitá-la, pelo que através deste projeto mostro que vou beber a este mundo, sim, mas não é só para "estragar", eu levo isto a sério! O que eu faço não é funaná tradicional, é a minha interpretação pessoal da cena, sou eu a dizer que também pertenço aqui, até porque há um legado muito forte; o funaná foi muito fustigado na era colonial, era visto como algo que apelava à sexualidade, muito boémio de certa forma.
É igualmente, como tu disseste já em entrevistas, o blues de Cabo Verde, certo?
Exato! O que é ali cantado são coisas muito chorosas, mesmo que haja piadas no meio e que o ritmo seja dançável e evoque a sensualidade. Todavia, há definitivamente ali assuntos que originam de um sentimento de tristeza e lamento- "Ora Di Bai" significa hora de ir, de sair de Cabo Verde para procurar uma vida melhor; é muito melancólico, muito ligado à descolonização, a movimentos antiescravagistas.
Que futuro vês para Scúru Fichádu? Aquilo que fazes é extremamente pessoal, o resultado das tuas vivências, mas os concertos que dás são bastante intensos e poderosos; receias chegar uma altura em que te sintas cansado demais para manter esta fórmula?
Bom, eu nunca tive grandes objetivos, os meus pais não tinham grandes posses pelo que aprendi a contentar-me com pouco, cresci a não exigir demasiado, a pensar que não tinha direito a mais… A minha sonoridade não me permite chegar a um circuito mainstream, mas também não quero porque senão teria de aprimorar a minha música e eu prefiro estar aqui a tocar para malta que entende bem isto.
Quanto à intensidade, eu lembro-me sempre do Iggy Pop, que ainda está ali apesar da idade (risos). Contudo, sim, penso nisso mas sem pensar demasiado, percebes? Tenho a certeza que arranjarei outra forma de trazer aquela "monstruosidade" para o palco de uma maneira que me faça sentir confortável. Eu já tenho 39 anos, Scúru só apareceu há três; se eu estivesse na casa dos 20 talvez o projeto tivesse mais longevidade, mas há tanto por onde pegar, diversas possibilidades… Seja como for, já tenho aqui um legado, que pode servir – ou não- como referência para as gerações futuras fazerem ainda melhor. Posso-te dizer, Scúru não existiria sem pesquisa também, sem trabalho de campo; The Prodigy, anos 90- aquele "hey" na "Un Kuza Runhu" é inspirado no Kurt Cobain, por exemplo-, bass music, a agressividade do metal e do punk, a métrica do hip-hop… está tudo lá, é só prestar atenção.
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quarta-feira, 19 fevereiro 2020