Reportagem Tindersticks em Lisboa
São presença assídua por cá e nunca desiludem: os Tindersticks assinaram um regresso triunfal a Lisboa, onde vieram apresentar o excelente novo disco No Treasure But Hope. Noite de lotação esgotada para ver uma banda que tem uma longa relação de amor com o público português.
É inevitável começarmos por destacar o simbolismo do local, já que a banda de Nottingham estreou-se em Portugal precisamente na Aula Magna, corria o ano de 1995. Tendo em conta que a presença de Stuart Staples e companhia nesta sala durante o festival IndieLisboa em 2011 ocorreu num contexto diferente (um filme-concerto durante o qual interpretaram alguns dos temas que compuseram para os filmes da realizadora Claire Denis), pode-se dizer que o concerto desta noite foi uma espécie de regresso à casa da partida, 25 anos depois.
A banda britânica passou por várias encarnações desde que se formou em 1991. A presente versão dos Tindersticks – composta pelos “pioneiros” Stuart Staples, David Boulder e Neil Fraser, aos quais se juntaram Dan Mckinna e Earl Harvin – estabilizou na última década e deu um segundo fôlego a uma carreira com quase 30 anos. O quinteto (que nesta noite contou com a preciosa ajuda do guitarrista Stanley Staples, filho do carismático vocalista dos Tindersticks) teve uma atuação irrepreensível e foi exímio a controlar o ritmo do espetáculo, ora calmo e hipnótico, ora intenso e galopante.
A entrada em palco ocorreu enquanto se ouvia a gravação de A Street Walker’s Carol tema instrumental incluído no EP que foi lançado em complemento ao novo álbum No Treasure But Hope. O novo longa duração foi interpretado praticamente na íntegra (apenas a faixa que dá título ao álbum ficou de fora do alinhamento) e resultou muito bem ao vivo, facto a que não será alheia a circunstância de o décimo primeiro disco de originais ter sido gravado de forma diferente do habitual, com a presença simultânea dos cinco membros no estúdio e não em pistas separadas. Nesta noite a primeira amostra do novo disco foi The Amputees, marcada pelo melodioso vibrafone de David Boulder e pela voz embargada de Staples, cantando de forma saudosa “I miss you so bad”.
A temática das novas canções gira invariavelmente em torno da relação entre beleza e dor. Ao ritmo dos ferrinhos do baterista Earl Harvin e dos efeitos orientais da guitarra de Neil Fraser, See My Girls colocou-nos perante alguém que observa o mundo através das fotografias de viagem enviadas pelas mulheres da sua vida. Um mundo paradisíaco, mas também de sofrimento: a narrativa da canção passou da monumentalidade da Torre Eiffel e do Park Güell para o desgosto provocado pela situação dos refugiados no Mediterrâneo e pelos campos da morte no Camboja e Auschwitz. "The Old Mans Gait" revelou-se uma triste reflexão sobre o quão melhor poderia ter sido o relacionamento de um filho com o pai que se encontra às portas da morte. Tough Love confrontou-nos com mais agruras, com a frase “take me to that man I was” denunciando uma relação amorosa que já teve melhores dias.
Quebrando o ambiente melancólico, Pinky in the Daylight irrompeu pela Aula Magna como um raio de sol. Em recentes entrevistas, Staples confessou ter escrito esta canção de amor em Ítaca, a famosa ilha de Ulisses, num (raro) momento de satisfação. Esse instante de felicidade repetiu-se em Lisboa, marcado por um irrequieto dedilhar de guitarra inspirado no cancioneiro popular grego e banhado por um apropriado jogo de luzes cor-de-rosa.
Embora tenham reservado a maior fatia do alinhamento para os temas novos, os Tindersticks não deixaram de rever capítulos anteriores do seu extenso catálogo. Running Wild (que abriu o concerto), Medicine, Another Night In e Show Me Everything foram efusivamente aplaudidos por uma plateia maioritariamente grisalha. Ainda assim, atendendo à riqueza orquestral destes temas na versão de estúdio, sentiu-se a falta de uma secção de sopros e cordas, que foi sendo suprida pelos efeitos da guitarra de Neil Fraser. Do último álbum - The Waiting Room, editado há quatro anos - resgataram Second Chance Man e o majestoso How He Entered. Neste último sobressaiu o registo falado Staples, em plena harmonia com salpicos de piano, guitarra acústica e percussão, numa canção que inclui uma referência à “the street walker’s carol” que deu título ao tema instrumental escutado quando a banda subiu ao palco.
Foi quando recuaram a 1993, para interpretar duas pérolas do álbum de estreia, que o frenesim se generalizou na plateia. Primeiro recuperaram a intensa Her (contam-se pelos dedos de uma mão as vezes que os ‘Sticks tocaram esta música na última década), ao ritmo de maracas e riffs de guitarra que fizeram lembrar o tema Misirlou, na versão gravada por Dick Dale em 1962. Mais tarde, Jism foi recebida com a excitação própria de uma canção que não era tocada ao vivo desde a longínqua digressão de 2003. Outra boa surpresa foi a lindíssima versão de Black Night, tema gravado pelo norte-americano Bob Lind em 1966 e cuja atmosfera serena encaixou que nem uma luva antes da comovente Trees Fall (mais um valor seguro do novo disco).
A parte mais intimista do espetáculo aconteceu quando interpretaram Carousel e, logo de seguida, Willow (tema composto para a banda sonora do filme High Life e que na versão de estúdio conta com a voz do ator Robert Pattinson). Foi um momento quase religioso, com Staples acompanhado por Dan Mckinna (que nessa ocasião trocou a guitarra-baixo pelo piano) e por um silêncio crepuscular que a plateia soube respeitar. E por falar em respeito, assinale-se a quase ausência de telemóveis no ar ao longo do concerto - prova de que as pessoas estavam mais preocupadas em sentir a música.
Ao fim de quase duas horas, despediram-se em câmara lenta com For the Beauty (belíssimos focos de luz foram iluminando cada um dos músicos, à medida que iam sendo acrescentados instrumentos) e, já no encore, com A Night So Still e Take Care in Your Dreams.
Sobre o novo disco No Treasure But Hope, Stuart Staples disse ser mais humano e luminoso. Depois de um concerto tão de emocionante, fica a esperança de que todos tenhamos saído da Aula Magna um pouco mais humanos.
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quinta-feira, 20 fevereiro 2020