Reportagem Ece Canli no Porto
Era um cenário acinzentado, marcado pela chuva, aquele que lá fora se erguia como uma pintura melancólica, o seu aroma de tristeza poética a contagiar-nos a alma e a criar o ambiente perfeito para uma acolhedora matiné na companhia de Ece Canli. Muita vontade tínhamos de nos encontrar novamente com esta artista turca a viver no Porto, sobretudo depois da chuva ter obrigado ao cancelamento da atuação marcada para a Feira do Livro.
Já lá dentro, abrigados do tempo no acolhedor auditório do CCOP, assistimos a algo que mil palavras mal conseguem descrever, mas que pode ser resumido como uma poderosíssima viagem espiritual. Há algo na música de Ece de tal forma transcendente que faz com que embarquemos numa viagem simultaneamente inquietante e deslumbrante, uma espécie de catarse libertadora que nos lava e purifica a alma . A sua música situa-se, se quisermos ser concretos, no campo da eletrónica experimental, mas qualquer tentativa de categorizá-la acaba por ir contra o que sentimos ser o objetivo da sua criação: livrar-se de quaisquer correntes de género para construir o seu próprio mundo idiossincrático, bonito jardim sonoro onde Ece cultiva uma identidade fantasista, experimental e alienígena, mas que parte sempre de um lugar profundamente humano, um local onde se sente tudo à flor da pele.
A voz assume-se como o elemento que guia este corpo artístico em contínua transformação, recorrendo tanto ao canto lírico beatífico, como a exercícios de respiração ou à reprodução de sons de animais e da natureza, não se chamasse o seu álbum de estreia “Vox Flora, Vox Fauna”. É exatamente a partir dessa relação - orgânica e primal - entre o humano, o animal e o mundo que nos rodeia que floresce a arte desta artista singular, sendo que neste final de tarde assistimos à exploração de todos esses contrastes unidos pela sua inquebrável ligação. A maneira como Ece tanto adota um registo melodioso e incrivelmente emotivo (quase que chorávamos ao escutar a grandeza do seu timbre angelical) ,como constrói uma amálgama de onomatopeias bizarras e urros viscerais é surrealmente bela - há uma sensação de euforia que explode cá dentro porque tudo isto mexe connosco, é tão forte e marcante quanto a mais transformadora das experiências religiosas. A atmosfera ao longo do concerto permaneceu em constante mudança e foi essa imprevisibilidade que, em parte, o tornou tão excitante: se em determinadas alturas o ambiente apresentava-se sereno e contemplativo - no início, por exemplo, pouco mais se ouvia do que leves ruídos da natureza como o vento, os pássaros ou o grasnar dos patos, acompanhados do toque meigo de instrumentos exóticos-, noutras ocasiões mostrava-se violento e aterrador, como quando Ece batia com a palma da mão no microfone para simular uma tempestade tão furiosa e imponente quanto o som genuíno de um trovão. Mas não só da voz - e dos loops criados a partir dela - vive esta proposta tão musical quanto performativa; há também uma esplêndida riqueza instrumental, ora refletida no sample de um teclado assombrado (imagine-se uma peça interpretada antes da morte, onde a delicadeza vocal de Ece transmitia uma ideia de lamento, como se cantasse , nostálgica e triste, sobre as cinzas de um mundo devastado), ora em paisagens eletrónicas insólitas ou mesmo em batidas pulsantes que remetiam para uma ideia de ritual tribalista, para um sentimento ancestral profundo e harmonioso que nos soou vital e urgente.
O final, verdadeiramente apoteótico, por sinal, revestiu-se de uma aura luminosa e dançável, quase ali no universo do clubbing mas mantendo-se sempre magistralmente etéreo e deixando-nos de coração cheio… Porque tudo isto foi maravilhoso, triunfal e superou todas as expectativas que tínhamos; e porque Ece, com esta estrondosa ode à liberdade artística e à diversidade das emoções, provou que é hoje uma das melhores artistas da atualidade- em Portugal e no mundo inteiro.
-
Organização:Lovers & Lollypops
-
sexta-feira, 22 outubro 2021