Reportagem Conferência Inferno
Tem dado muito gosto acompanhar a evolução dos Conferência Inferno, jovem banda que começou por se apresentar ao mundo, em 2019, com um promissor EP intitulado “Bazar Esotérico" e que este ano lançou a esplêndida revelação que foi o álbum “Ata Saturna”, um dos melhores ( senão mesmo o melhor, honestamente) discos nacionais de 2021. Essa boa fase que atravessam atualmente refletiu-se, aliás, na agenda regular que mantiveram ao longo de 2021, com concertos espalhados um pouco por todo o país e até pela vizinha Espanha, sendo que esta atuação em particular - já a segunda nesta tão acolhedora casa, depois da apresentação do álbum em Maio - acabou por ter um sabor de despedida em grande, como se o trio estivesse a dizer adeus a um ano glorioso na esperança de que o próximo seja também memorável.
Marcado para o final da tarde - assim têm sido estas matinés da Lovers no CCOP, criadas para contrariar a tendência geral de eventos noturnos - , o concerto revestiu-se de um ambiente que claramente beneficia o grupo , aquele que, no fundo, anseiam poder sempre cultivar: o de festa vibrante, celebração sonora e espiritual a mergulhar de cabeça no encanto do deboche. O próprio título do álbum faz referencia à Saturnália, festival da Antiga Roma onde as regras eram temporariamente suspensas, e foi nesse clima apoteótico de liberdade que se escreveram as felizes memórias deste sábado. Em plena harmonia as pessoas dançavam, abanavam a cabeça e aplaudiam, livres que se sentiam para se expressar como quisessem, e logo aqui observamos um dos traços mais marcantes dos Conferência Inferno: eles são, sem dúvida alguma - não se ouse sequer questionar - uma banda do povo; e dizemos isto da forma mais elogiosa humanamente possível, pois há aqui uma clara ligação emocional a ser gradualmente fortalecida, daquelas que originam as mais míticas bandas de culto. Uma ligação que se explica pelas performances divertidas e joviais, sim, mas também pela estrondosa qualidade musical, onde uma sonoridade apoiada na familiaridade do passado encontra uma abordagem refrescante no presente. O instrumental, festivo mas denso, alimenta-se de batidas que remetem para o krautrock da Alemanha ou o post-punk britânico, enquanto que as vozes- poéticas e teatrais, mas sem que essa teatralidade deixe alguma vez de soar genuína e visceral- recordam conscientemente os GNR, cujo álbum “Independança”, de 1982, é abertamente assumido como uma influência crucial na elaboração deste universo. Todavia, mesmo com essa máquina do tempo aleatória a recolher referências fundamentais, os Conferência recusam-se a ser um mero tributo, exibindo antes uma personalidade bem vincada, um sentimento que, de forma abstrata mas simultaneamente palpável, apenas a eles pertence.
Numa prestação em ritmo crescente - se o início, ainda a aquecer, já prometia, o meio e o final concretizaram essa promessa - ,quem mais se destacou foi, naturalmente, o vocalista e frontman Francisco Lima (a certa altura contribuiu com um pouco de baixo também, mas o bolo instrumental, com recheio de sintetizadores e teclas, é essencialmente preparado pelo duo que o acompanha), que acabou por desempenhar dois papéis: o de poeta urbano a lançar, num registo frontal e estonteante, versos que narram as vivências da Invicta, e o de anfitrião dinâmico que animou a plateia nesta festa comunitária. Daqui resultou um cruzamento entre a introspeção leve e a explosão de intensidade latente, que até podemos descrever como uma atitude “in your face” moderada, sem que essa moderação destrua a garra indespensável para revelar o que sempre foram, mesmo com toda a luxuosa montra de influências em exibição: uma banda de alma punk, paixão ardente a ser cuspida por todos os lados num ataque eloquente que traz os The Fall à memória. Entre os temas que compõem esse clássico dos tempos modernos (não estamos nada a exagerar, acreditem) que é o supracitado “Ata Saturna”, como “Sina”, “Não Quero” ou “Ausente”, houve igualmente tempo para breves visitas ao passado, apresentações inéditas de novas canções que ansiamos ouvir finalizadas em estúdio(soaram mesmo bem) e ainda uma cover de “Carrossel da Vida na Cidade”, clássico da Lena d'Água que decidiram interpretar depois de Francisco garantir que ninguém da SPA estava presente.
Em cerca de 70 minutos , já a contar com o encore, os Conferência Inferno assinaram um concerto bom, francamente bom. E o mais entusiasmante? Nem sequer vimos, provavelmente, o melhor deles, nem de perto. É que esta malta tem tudo para, um dia, conquistar o estatuto de veteranos idolatrados - um pouco como os Mão Morta, para dar um exemplo-, pois o potencial para atingir esse nível está lá, só nega quem não quer abrir os olhos. No futuro, poderemos mesmo olhar para esta passagem como um dos capítulos iniciais de uma bela e inesquecível viagem, e só o facto de avistarmos pessoas, à saída, a cantarolar as melodias que tinham acabado de escutar é claramente um sinal do que está para vir. Quem ainda não se juntou à aventura,que o faça o quanto antes; há muitos lugares disponíveis e o futuro mostra-se risonho.
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Organização:Lovers & Lollypops
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quarta-feira, 15 dezembro 2021