Reportagem As Docinhas no Porto
Comecemos logo por afirmar o que urge ser dito: mais do que uma mera atuação, o que aqui presenciamos foi um furacão demolidor de garra punk indomável criado por duas miúdas com uma garra arrepiante, uma intensidade que deixaria muitos homens “duros” francamente intimidados. Falamos d’As Docinhas, dupla de Viana do Castelo ( aqui acompanhada por uma habilidosa banda de apoio, destaque obrigatório para João Gato no saxofone) que nesta noite absolutamente histórica - incluindo para o Understage, que assim acolheu um dos melhores concertos da sua curta mas prolífica existência, senão mesmo o melhor de todos - , provou que o “hype” à sua volta é absolutamente justificado,pelo meio deixando bem claro que é nos palcos que a sua música floresce e alcança aquela força colossal que os trabalhos de estúdio sugerem, mas nunca chegam totalmente a libertar.
O espaço, convenhamos, ajudou imenso, o que não significa que o concerto deixasse de ser glorioso noutro local ( pois sabemos muitíssimo bem que elas partiriam tudo em qualquer sítio , a qualquer hora),mas não é segredo que o ambiente ideal pode mesmo oferecer um novo encanto, e foi exatamente isso que aconteceu. A atmosfera que se “respira” mal se desce as escadas do Understage e se entra naquele soberbo armazém escuro, intimista, de sabor “industrial” e underground, quase como um clube noturno de Berlim, é incrivelmente envolvente e perfeita para receber propostas deste género - diferentes, vanguardistas, insólitas de um modo artisticamente provocador. E foi assim, já com o mood devidamente instalado, o entusiasmo palpável no ar, que As Docinhas entraram em cena, primeiro de forma algo tímida, voz e riffs de guitarra a preencherem lentamente o quadro sonoro, para pouco depois lançarem uma ardente bola de energia ao qual ninguém ficou indiferente - com um power destes, teríamos que estar mortos para não vibrar com esta descarga. Na verdade, vamos mesmo mais longe: há muito, mas mesmo muito tempo que não víamos uma banda punk “até ao osso” num formato tão surrealmente visceral, autêntica força da natureza a disparar paixão inconformista e irreverente com uma entrega quase impossível de descrever.
Efetivamente,isto foi espetacular do início ao fim, e nem a corda de guitarra partida logo à primeira música quebrou minimamente o entusiasmo - a guitarra continuou a ser usada, aliás, até alguns minutos depois a organização fornecer uma nova; no final, o que foi um acidente, um imprevisto, acabou por enfatizar o espírito rebelde, deliciosamente in your face, de uma banda que faz do ato de dar tudo uma exímia forma de arte. Várias foram as alturas em que pensamos como isto era realmente inacreditável- estávamos boquiabertos, absolutamente fascinados, loucamente apaixonados pelo espetáculo vigoroso que nos encontrávamos a testemunhar. No fundo, também julgávamos que algo assim, quase saído dos anos 90, com uma impetuosidade ali a recordar o seminal movimento , nunca esquecido, que foi o riot grrrl(aqui com uma estética queer), já pertencia… bem, a esses saudosos anos 90, como se fosse um produto de uma época - desculpem-nos a nostalgia- que já não volta. Pois bem, enganados estávamos nós, e ainda bem, porque este serão soube-nos pela vida. A felicidade expressa nestas palavras não mente, pois não?
Claro, falamos aqui de punk, que tecnicamente é aquilo que elas são ,mas também bebem imenso a sonoridades francamente mais ritmadas e “quentes”, sendo que quase podemos usar o termo baile funk para pintar uma imagem fiel da mistura explosiva que sai deste picante caldeirão de sons- é “rasgo” punk e dança calorosa num só, não recomendado a puritanos e conservadores.
Disso, de resto, estamos bem seguros, porque não pensem que a irreverência se fica pela fusão eclética e louca que destilam: o próprio espetáculo (não há palavra mais perfeita para o caracterizar, confiem em nós) é magnífico e espantosamente imprevisível, senão veja-se: a determinada altura, um polícia aparece em palco, e se não evitamos questionar “o que raio se passa aqui?”, logo a seguir obtivemos a resposta, quando descobrimos que essa mesma figura fazia parte do “show” mal se meteu com elas e se despiu. Por esta altura, depois de algo assim, já estávamos preparados para tudo, e essa curiosidade constante, aliada a um clima de festa estrondoso (para o qual muito ajudou a energia da audiência, sobretudo por parte dos fãs que se mantinham à beira do palco, próximos da vista e do coração, como uma dedicada crew de apoio emocional), fez desta passagem uma das mais excitantes que já tivemos o prazer - nem sequer dizemos oportunidade, é prazer mesmo- de assistir.
Mais à frente, num dos (poucos) momentos calmos da prestação, As Docinhas interpretaram “Alexandre”, um comovente tributo ao antigo membro do grupo que se suicidou em 2017, e aí, num gesto profundamente belo e tocante, o público imitou as anfitriãs e sentou-se no chão para escutar com mais atenção a sentida homenagem a alguém fisicamente ausente mas que permanece vivo no coração de quem dele sente saudades. Foi claramente bonito, e permitiu também que recuperássemos um pouco o fôlego.Contudo, a verdade é que o público permanecia eufórico e cheio de gás, ao ponto de até ter “obrigado” As Docinhas a voltar ao palco para um encore, ainda por cima para tocar uma música repetida. O problema? Nenhum, demos tudo uma segunda vez.
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Organização:Lovers & Lollypops
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terça-feira, 08 março 2022