Matiné Saliva Diva
No que já começa a ser uma tradição bastante agradável, as matinés da Saliva Diva regressaram ao Estúdio Perpétuo (uma antiga sala de cinema que continua a dedicar muita da sua programação à sétima arte, basta olhar para os cartazes de filmes afixados na parede) para alegrar e tornar menos pachorrentas as nossas tardes de domingo. Tratam-se honestamente de momentos muito bem passados, não só pela boa qualidade musical oferecida, mas também pelo óptimo ambiente que por lá se vive: familiar, despretensioso e divertido, uma partilha genuína de melómanos para melómanos altamente inspiradora que nos faz abandonar o espaço - muito apelativo por si só, com um carisma bem próprio, retro de um modo especialmente aconchegante - a pensar “caramba, isto valeu mesmo a pena”. Na verdade, o clima é tão relaxante que a música, obviamente importante e indispensável, quase que fica em segundo plano, não no sentido de a ignorarmos ( isso seria uma heresia), mas no sentido de desejarmos, mais do que qualquer outra coisa, “mergulhar” nesta atmosfera mágica de convívio e harmonia ( havia pessoas a conversar no pátio exterior, até a trocar ideias junto à mesa de merchandising), porque a própria Saliva Diva não se limita a ser uma simples editora e promotora - faz questão de ser, acima de tudo, uma comunidade aberta a todos os que com ela queiram celebrar a vida e as artes. Pode soar rebuscado, quase uma tentativa de romantizar o evento e o conceito, mas acreditem que não há exagero nenhum nestas palavras que vos chegam, apenas uma descrição fiel do que caracteriza estas sessões; se, por acaso, soa apaixonada, isso é simplesmente porque mereceu o nosso amor.
Para esta matiné, já a quarta desde que esta aventura se iniciou em Outubro (e depois de uma paragem em Janeiro e Fevereiro, por motivos relacionados com as restrições e sacrifícios a que a pandemia infelizmente obriga), os convidados foram os The Rite of Trio e os 10 000 Russos.
Os primeiros aqueceram muitíssimo bem a plateia, partindo de uma ideia e estrutura jazz para se lançarem numa exploração sonora que não só enveredou pelos caminhos do prog, como também se serviu imenso do legado do noise e do experimentalismo dissonante. Na verdade, mostraram-se muito mais ruidosos do que esperávamos, o que constituiu uma postura refrescante que acabou por resultar francamente bem neste contexto.
Depois, claro, há Pedro Melo Alves, e sobre ele éramos capazes de lhe dedicar o resto do texto. Todos são músicos incrivelmente competentes, mas este último é simplesmente um dos mais fenomenais bateristas da cena nacional, um verdadeiro mestre cuja destreza (o homem começou a atuação com uma espécie de bodysuit que também lhe cobria o rosto, e mesmo assim arrancou uma prestação estupenda) revela-se extraordinária, diríamos mesmo surreal. Mas a verdade é que os três formaram uma máquina bem oleada que soube protagonizar um concerto desafiante, e que abraçou igualmente o universo do teatro através de uma curta narrativa contada em palco - um modo de ir mais longe e adicionar algo diferente a um espetáculo maioritariamente situado no campo dos sons.
Mas se os Rite souberam proporcionar um belo aquecimento, os 10 000 Russos fizeram a festa toda, tendo sido responsáveis por um dos mais brilhantes e excitantes concertos que já vimos num evento da Saliva. Do início ao fim, isto foi uma dose potente de kraut/psych aliciante, musculado e esotérico, autêntica nave espacial( assim soava muito por culpa daquelas vozes “enterradas” num reverb que ecoava pela sala como uma mensagem enigmática) a descolar a toda a velocidade e a levar-nos numa viagem espantosamente alucinante - ora mais frenética, ora de sabor etéreo, mas sempre magnificamente envolvente. O poder desta atuação é mesmo difícil de explicar por palavras, e mesmo os vídeos postados como histórias nas redes sociais, quando vistos a partir do conforto do lar, simplesmente não reproduzem fielmente a energia psicadélica que nos deixou deslumbrados quando tudo estava a acontecer ao vivo. Além disso, se qualquer atuação é naturalmente um momento irrepetível, o que dizer quando a atmosfera é inacreditavelmente empolgante, quando o som se encontra a um volume particularmente pujante (vibramos mesmo com aquilo, alma e corpo em processo de catarse) e quando uma boa parte dos presentes - incluindo membros da organização, lembram-se de dizermos que tudo isto era feito por melómanos para melómanos? Pois aqui está a prova - se levanta das cadeiras e vai para junto do palco sentir a cena e dar tudo? Resumindo, um encerramento épico: dançamos, saltamos e vivemos ao máximo o espírito intimista e puro do underground- e nada bate essa sensação de pertença, sinceramente. Alguns permaneceram nas suas cadeiras, no entanto, e juramos que não entendemos como raio isso foi possível, porque da nossa parte admitimos com franqueza: não resistimos à loucura da festa que surgiu espontaneamente nas filas da frente, parecia-nos demasiado apetitosa para não nos lançarmos a ela.
Quando chegou ao fim, estávamos bem cansados, mas cá dentro sentiamo-nos de coração cheio, totalmente satisfeitos. E foi precisamente com esse sentimento de felicidade que depois das obrigatórias despedidas saímos do local com uma certeza inabalável: iremos brevemente regressar, para sermos felizes outra vez.
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quarta-feira, 04 dezembro 2024