Tiago e os Tintos + El senõr
Março viu a realização não de uma, mas de duas matinés da Saliva Diva no espaço habitual, sempre aconchegante, dotado de uma magia bem própria, que é a Sala Estúdio Perpétuo.
Desta vez, as propostas para mais uma bela tarde de domingo viraram-se essencialmente para o rock de guitarras afiadas e repletas de distorção, tendo tudo começado ao som de Tiago e os Tintos (ou seja, Tiago Faria apoiado por elementos de Terebentina e Gota), uma das grandes apostas da Saliva que ainda em Novembro passado lançou um álbum verdadeiramente promissor intitulado “O Ecoar D’uma Sirene”. E se as músicas são, sem dúvida, altamente estimulantes -falamos aqui de melodias pop orelhudas contagiadas pela doçura de um punk jovial e apaixonado, a fervilhar de energia pura e inocente - , ao vivo ainda há muito trabalho a fazer. Não que o concerto tenha sido mau - antes pelo contrário, foi claramente agradável e competente, e ficamos até intrigados com a tímida mas ainda assim visível estética “shoegaze” refletida na postura e, ocasionalmente, no próprio som dissonante que dali saía -, mas a verdade é que faltou aquele “clique”, aquela qualidade inexplicável mas palpável que transforma uma atuação “normal” num acontecimento mágico e indescritível, que nos dá arrepios pelo corpo todo e nos faz sentir que não há lugar no mundo onde preferíssemos estar. É uma sensação maravilhosa - a razão, no fundo, pela qual vamos a concertos-, e é uma pena que não a tenhamos experienciado aqui, pois o potencial desta malta para ser uma das melhores bandas de rock do país (a sério, vão lá ouvir o álbum de estreia e notem bem a garra daquelas malhas estupendas) é francamente surreal. No entanto, precisam de acumular mais experiência em palco para que se tornem mais coesos e, acima de tudo, orgânicos (vários foram os momentos, aliás, em que sentimos falta de uma maior espontaneidade na entrega, pareciam-nos sempre pouco soltos, quase mecânicos ).
Todavia, parte do charme deste tipo de concertos - mais underground, “pequenos” e intimistas- é precisamente a oportunidade que nos dão de acompanhar a evolução de vários grupos e artistas, pelo que ansiamos poder assistir ao crescimento destes rapazes na esperança de que o potencial que tão bem espelham em estúdio seja eventualmente reproduzido ao vivo. Vamos mesmo mais longe, na verdade, e num otimismo que nos parece mais saudável do que a rabugice e o pessimismo que tantas vezes vemos por aí, escolhemos acreditar que esse dia não só virá, como ocorrerá brevemente. Entretanto, continuaremos a mantê-los debaixo de olho e, claro, a deleitarmo-nos com o álbum e a magia contagiante que dali brota sempre que o colocamos a tocar…Nunca falha, é incrível.
Curiosamente, o que faltou a Tiago e os Tintos esteve muitíssimo presente no concerto que se seguiu - o dos El Señor. Já ao entrar novamente na sala depois do intervalo entre atuações, pairava no ar a sensação de que este próximo concerto seria o melhor da matiné e uma prestação particularmente boa, sendo que efetivamente não estávamos enganados. O que aqui testemunhamos foi uma simples e honesta descarga de garage rock/stoner em formato power trio, que tanto se alimenta da impetuosidade do punk como da onda irresistível de jam sessions calorosas - por outras palavras, dá prioridade às guitarras fortes, “quentes” e selvagens, endeusando o poder do riff. E se isso, por si só, já era suficiente para instalar uma grande atmosfera de descontração rock'n'roll, o ambiente que lá dentro se vivia só a tornou ainda mais envolvente e cativante, cobrindo-a com um recheio extra de entusiasmo e carinho. Para isso muito contribuiu o convite da banda para que todos se levantassem das cadeiras do auditório e viessem sentir a energia bem junto ao palco (um pouco como aconteceu no concerto dos 10 000 Russos neste mesmo local, embora aí a adesão tenha sido ainda maior ), até porque assim já dava para dançar livremente e sem restrições, exatamente como a música merece sempre - mas mesmo sempre - ser vivida. De certa forma, olhávamos à nossa volta e víamos a beleza e o encanto do underground em todo o seu esplendor; a sala podia não estar cheia (embora a dimensão do espaço não ajude), mas nem por isso o clima foi menos festivo e genuíno. O único defeito verificou-se, infelizmente, na qualidade de som- nesta ocasião algo estridente e nem sempre cristalino-, mas nem isso nos impediu de absorver, de forma prazerosa, acrescente-se, toda a força inspiradora e refrescante de uma prestação que só pode ser descrita como altamente satisfatória. Um adjetivo que, de resto, resume na perfeição a nossa experiência em mais uma matiné da Saliva Diva: se a música é o que nos faz marcar presença , o ambiente acolhedor, relaxante e “caseiro”, - como não adorar aquele espírito comunitário desprovido de barreiras, em que todos conversam alegremente e em que se ergue plenamente a utopia luminosa de um mundo idílico?- é o que nos motiva a regressar. Iniciativas assim, fruto de muito sacrifício e “amor à camisola”, devem claramente ser apoiadas, e não apenas nas redes sociais, mas também de forma presencial e “real”...Acreditem que a experiência é realmente gratificante.
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Organização:Saliva Diva
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quarta-feira, 04 dezembro 2024