Lyra Pramuk
Cada vez mais uma presença regular no nosso país, Lyra Pramuk passou uns dias em Portugal para um total de três concertos (incluindo uma passagem pelo festival açoriano Tremor) onde aproveitou para se estrear no Porto, mais precisamente no Passos Manuel. Uma sala que, curiosamente, tal como a artista e a música por ela produzida, se revela intimista e calorosa, vanguardista mas familiar. Caminhando pelas ruas da eletrónica exploratória num formato deliciosamente atmosférico - pisca-se o olho a Grouper ou mesmo a Björk (o sabor bucólico num formato vanguardista é inegável) ao mesmo tempo que se tenta construir algo pessoal e intransmissível -, Lyra cria camadas sonoras luminosas e de sentimento onírico, como se tudo fossem recordações fragmentadas de sonhos idílicos, longínquos mas palpáveis. Acima de tudo, se ao ouvir “Fountain” - o álbum que a trouxe cá, nesta bela noite de sexta - feira - notamos uma alma indiscutivelmente humana a dialogar num mundo de intensa manipulação eletrónica, ali entre o ancestral e o futurista até ambos se tornarem inseparáveis, ao vivo observamos algo mais: a sua música não é meramente “humana”, reveste-se também de um forte caráter humanista. É que Lyra Pramuk não se limita a ser uma simples intérprete entregue a uma postura emocionalmente distante (ou seja, aquilo a que chamamos “piloto automático”) , faz questão de falar com a audiência, de formar uma ligação que permita que os estranhos à sua frente se transformem em amigáveis conhecidos. Tentativa de criar empatia, sim, mas também - sentimos nós, ao estudar a sua linguagem corporal- de estabelecer um local de pertença, um lugar de conforto psicológico no qual possa exibir a mais pura versão de si mesma, convidando ainda todos os que a rodeiam a também se libertarem dos seus próprios medos e inseguranças e a serem livres, sempre em espírito de harmonia. Pensamos no percurso de Lyra, primeiro enquanto mulher trans - viagem de autodescoberta marcante que claramente se reflete no seu trabalho - e depois enquanto ser humano deslumbrado pelo espírito comunitário que descobriu tanto nos coros da sua juventude como nas raves transgressivas e estimulantes de uma Berlim pulsante e aliciante- e rapidamente entendemos porque é que, para ela, o espaço acaba por transcender a mera geografia para se instalar no campo da memória afetiva, da celebração coletiva de uma intensidade vigorosa e visceral que a música, num formato próximo e intimista, acaba por despertar.
Foi precisamente essa sensação - a de estarmos todos lá, a receber e a partilhar a energia emotiva de sons mergulhados em belas texturas etéreas - que Lyra fez questão de cultivar. E só não dizemos que foi totalmente bem sucedida porque, para sermos realmente honestos, a sala não se revelou a mais indicada, por muito que em teoria até parecesse ser. Não estamos aqui a questionar a qualidade do Passos Manuel - que é, de resto, um local mítico na vida cultural e noturna da cidade há muitos anos - , mas para uma sonoridade assim pedia-se um espaço que proporcionasse uma maior “imersão” sonora (e, consequente, espiritual), uma sala que melhor enaltecesse a aura transcendente do universo de Lyra, que nos fizesse perder e viajar pelos mais recônditos locais da nossa mente até voltarmos, no final, ao mundo “real”. Tivemos isso, sim, mas não com a intensidade épica que desejávamos. Os melhores momentos do concerto, curiosamente, foram os que abraçaram um lado mais performativo, ilustrado pela participação de uma dançarina que se deixava “dominar” pelos sons à sua volta, como se por eles estivesse enfeitiçada . Foi belo, encantador, dir-se-ia mesmo majestoso ; de repente, o que começou por ser um concerto “normal” transformou-se num espetáculo bem mais ambicioso e eclético, em que música e dança performativa se juntaram para formar um só. Estávamos a gostar tanto, aliás, que lamentamos quando Lyra ficou novamente sozinha em palco e a performance voltou a ser meramente musical. Claro, ainda tínhamos a qualidade das composições - que foi o que nos motivou, desde logo, a sair de casa - , mas sentimos falta daquele “ extra” que realmente acrescentava algo mais, abrindo portas para uma apreciação multidisciplinar sem barreiras no modo como se exprimia. Quando nos foi retirado, e após absorvermos a sua magia, parecia que algo se tinha perdido. Felizmente a dupla rapidamente regressou e o final do concerto- já num tom mais dançável e ritmado, discoteca espiritual da mais pura e inspiradora libertação- constituiu um ótimo encerramento. Poderá não ter sido absolutamente perfeito pelas razões acima mencionadas, mas foi bom, indiscutivelmente bom. Além disso, nestes tristes tempos de guerra, houve alguém a recordar-nos que a beleza ainda existe e que é possível plantá-la - basta querermos. Só por isso podemos dizer que valeu a pena, acreditem.
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Organização:Lovers & Lollypops
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quarta-feira, 04 dezembro 2024