Matiné Saliva Diva
Não é bem um adeus, antes um até já; assim se pode olhar para o fim deste ciclo de matinés que a Saliva Diva fez nascer, com muito suor e paixão - a história que lhes faça justiça - na Sala Estúdio Perpétuo. Uma nobre aventura que terminou da melhor forma com uma celebração em dose dupla, porque se é para nos despedirmos - por agora, pelo menos - que o façamos em grande, com o encerramento triunfal que uma iniciativa destas indiscutivelmente merece. Felizmente para nós, foi mesmo isso que aconteceu: a festa foi gira, divertida (em certos momentos chegou mesmo a ser deliciosamente eufórica) e deixou saudades.
Num evento que também serviu para comemorar o segundo aniversário da Saliva (houve até bolo no segundo dia, e estava mesmo bom e apetitoso, acrescentamos aqui com o mesmo prazer com que o comemos) , o primeiro dia reuniu, curiosamente, o cartaz que estava inicialmente previsto para a matiné de fevereiro , mas que acabou por não se realizar nessa data por, bem… por razões já muito familiares a todos os que acompanharam os cancelamentos e adiamentos destes últimos dois anos. Talvez por isso nos tenha sabido ainda melhor ver esses concertos agora, se bem que quando se começa com os Bardino, há uma probabilidade bem elevada de a coisa correr mesmo bem, não falássemos aqui de uma das melhores e mais promissoras bandas nacionais da atualidade , uma daquelas bandas para quem , como se costuma dizer, o céu é o limite. Ainda carregam consigo os temas de “Centelha” , álbum lançado já há dois anos - mais precisamente no dia 25 de agosto de 2020 - ,mas que continua a soar espantosamente refrescante, certamente por estarmos a falar não só de um “bom disco”, mas também de um dos mais impressionantes e sofisticados álbuns nacionais desta década (o que interessa ainda estarmos no segundo ano? Esta afirmação permanecerá relevante quando chegarmos ao final de 2029).
Efetivamente, com temas deste calibre, nada mais foi preciso para que “respirássemos” magia. Logo ao início, as melodias da intro que abre o disco - majestosa e transcendente celebração de teclados coloridos e luminosos- ecoaram pelo auditório, estendendo-nos a mão para nos levar numa magistral viagem de tons oníricos, emoções genuínas a acariciar-nos delicadamente a alma como uma brisa suave num dia de verão.
Foi assim que embarcamos, entusiasmados e intrigados, nesta livre exploração de sons que refletem sensações e sugerem atmosferas, como uma pintura sonora que ilustra estados de espírito espontâneos. É música indomável, admiravelmente ambiciosa e que nunca para de se metamorfosear, como uma tela em branco que vai sendo gradualmente preenchida com uma panóplia de cores quentes e expressivas. Evoca conscientemente o legado exploratório do post-rock, mas acaba por se inscrever na escola do prog de tonalidades jazzísticas, pelo meio piscando o olho à eletrónica de modo a acrescentar ainda mais sabor a uma receita fabulosa. Tudo aqui soa maravilhosamente requintado e gracioso, dotado de uma classe invejável, e foi precisamente disso que viveu este concerto: da força e carisma de músicas fortemente dinâmicas que nos atraíram para uma teia de sedução harmoniosa, e no qual cada instrumento estabeleceu entre si um diálogo estimulante; se o baixo e a bateria ergueram um esqueleto rítmico bem sólido e resistente, a guitarra e os teclados forneceram a decoração primorosa, o toque extra de elegância palpável. Que não haja dúvidas: este foi um concerto formidável, uma demonstração de intensa vitalidade protagonizada por uma banda no auge da sua existência.
Bastante bem estiveram igualmente os The Miami Flu, eles que no ano passado lançaram o interessantíssimo “Reunion Day” e que aqui ofereceram uma prestação incrivelmente competente que mostrou o quanto evoluíram como banda nos últimos anos. Desde logo ficou claro que este foi o concerto ideal para terminar o dia , pois se a sonoridade dos Bardino tem um feeling ligeiramente mais sereno, ainda que deveras empolgante - como uma dose revigorante de energia matinal-, aqui entramos pelo campo do psicadelismo vibrante e jovial , que também “viaja” mas de forma particularmente distinta.
Há claramente a sensação, sobretudo quando os vemos ao vivo e a experiência se torna mais pujante, de estarmos numa aventura alucinante rumo aos confins do universo, mas se isso cria um clima magnificamente aliciante, o que realmente nos impressionou foi mesmo a qualidade das composições. Poderosas e orelhudas, doces e resplandecentes, espalham um sabor de verão “psicadélico”, como se tudo fosse a idealização de uma utopia juvenil em formato de banda sonora inebriante. Por vezes fazem pensar nos australianos Pond - muito por causa daquela atmosfera relaxante, deleitosa e inspiradora - , mas há aqui uma onda bem anos 80 pelo meio, uma inocência retro que sobressai nos momentos mais delicados e“açucarados” (vão lá ouvir as músicas que entendem logo esta adjetivação), e isso só joga a favor deles, porque não o fazem de forma “cheesy”, antes de um modo bem agradável e apelativo, quase como uma sugestão de nostalgia que nunca mergulha de cabeça no passado. Um concerto muito bem dado, que soube sempre manter a energia acesa e que fez o pessoal das filas da frente mover o corpo; acima de tudo, revelou um grupo que merece ser seguido com atenção, porque depois desta prestação, até o disco deles nos parece ter ( ainda) mais encanto.
Chegados ao segundo dia da derradeira matiné (relembramos: por agora) da Saliva Divana Sala Estúdio Perpétuo, o cansaço já se fazia lentamente sentir, até porque tínhamos dado imenso de nós no dia anterior, e porque o próprio tempo tristonho que decorava esta tarde de domingo com tons acinzentados de melancolia só contribuía para esse leve estado de sonolência. Felizmente, depois da loucura total que foi a última atuação, saímos de lá de alma lavada ,completamente rejuvenescidos, inspirados pela beleza irresistível do grito de libertação sonoro que absorvemos.
Antes, no entanto, tivemos oportunidade de assistir ao concerto dos Melquiades, uma das mais recentes adições ao “ roster” da Saliva que editou o álbum de estreia, intitulado “Fountain of Shingle” no passado mês de abril. E se é sempre um prazer acompanhar novos valores de um underground que se quer ativo e prolífico, a verdade é que o concerto acabou por deixar algo a desejar. Não foi inteiramente culpa deles, vítimas de lamentáveis problemas técnicos que surgiram com a avaria de um amplificador e que obrigaram a uma breve interrupção (contratempo com o qual lidaram de forma admirável, já agora) , mas a própria receita musical do grupo - um psicadelismo aliado ao groove do funk e recheado de sabor tropical - ainda necessita de ser melhor “ temperada”. Há ali potencial, em cada música vislumbramos boas ideias e uma notória apetência para a criação de “texturas”, mas falta-lhes ainda sacar malhas valentes que fiquem na memória, malhas que nos agarrem imediatamente a atenção e nos deixem a salivar( não resistimos a esta pun, desculpem lá) por mais. No entanto, fazemos questão de acompanhar o percurso deles e, claro, de os ver em melhores condições, porque o espírito do underground também passa por aí, por observar o crescimento das bandas e documentar in loco a sua evolução.
Quanto a Chalo Correia, duas palavras resumem tudo : festa épica. Olhávamos à nossa volta umas horas antes de este SENHOR (tudo com letras maiúsculas para destacar a sua enorme grandeza) subir ao palco e dava para entender que algum do público tinha vindo especialmente para o ver, uma lealdade não só bonita, mas altamente compreensível face à emoção nua e crua de uma prestação inigualável. Se há algo que se revela incrivelmente ingrato, é arranjar palavras que descrevam fielmente a paixão contagiante desta atuação, o seu poder capaz de curar, pelo menos temporariamente, qualquer mágoa e depressão, como uma luz aconchegante que penetra na escuridão agonizante da alma para lhe dizer que vai ficar tudo bem. Porque é mesmo isso que sentimos quando o ouvimos, invadidos que somos, quase sem aviso mas sem nos importarmos com essa surpresa, por essa sensação de esperança inabalável que nos renova por dentro. Uma sonoridade exótica e inspiradora, estupenda festa colorida de sons maravilhosamente dançáveis - no fundo, é o legado da Angola das décadas de 60 e 70 a ser relembrado no presente como um tesouro que jamais deverá ser esquecido . Não dá, aliás, para permanecermos quietos quando somos confrontados com toda esta riqueza rítmica inacreditavelmente viciante, percussão ágil e frenética a “pontuar” os tons quentes de guitarras aconchegantes (ou de outros instrumentos, como aquela harmónica “suculenta” e soberba) que se deixam levar por uma voz repleta de paixão, uma voz a transbordar de emoção pura e que se recusa a ser contida, preferindo ser livre como um voo de um pássaro. Ao nosso redor dançava-se sem parar - alguns sozinhos, outros enquanto casal - e lentamente se construía o bonito cenário de paz que o mundo nunca conseguiu instalar, mas que neste auditório floresceu de forma orgânica.
Ao longo de pouco mais de uma hora dançamos, sentimos, amamos e, acima de tudo, partilhamos : Chalo enquanto cativante contador de histórias (falava de si, de Angola, do que queria e lhe vinha ao coração, a espontaneidade reinava no seu discurso), e nós enquanto público, a escutá-lo com atenção e a retribuir com amor e carinho. Efetivamente, será esta a mensagem mais importante a retirar daqui: quando celebramos a diversidade, sem qualquer tipo de preconceito, abrimo-nos a um maior enriquecimento espiritual - e, nesse sentido, este concerto terá sido um dos mais comoventes e eficazes manifestos antirracismo que alguma vez testemunhamos. Porquê? Porque só alguém sem qualquer tipo de sensibilidade poderia ficar indiferente a algo tão poderoso, tão autêntico, tão lindo e gratificante. Como o próprio disse e muito bem “o mundo precisa de África” - nós não podíamos estar mais de acordo. E não nos lembramos também de melhor encerramento para o fim (temporário, repetimos aqui como um desejo que esperamos ver concretizado, vá lá, Saliva, não nos falhes) destas matinés, pelo que só nos resta dizer : obrigado, querido Chalo, por esta dose de felicidade preciosa, e obrigado, Saliva, por nos teres introduzido a esta íntima e acolhedora sala e proporcionado grandes concertos em conjunto com ótimas sessões de convívio. Foi uma bela aventura que vivemos - não, que partilhamos - contigo, mas como escrevemos no início do texto, não será com certeza um adeus definitivo, só um prolongado até já… Vemo-nos em breve?
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Organização:Saliva Diva
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quinta-feira, 26 maio 2022