Scúru Fitchádu
Uma celebração em tom revolucionário, a miscigenação sonora berrada em crioulo a penetrar a alma e a fazer mover o corpo num Maus Hábitos abafado e festivo. Foi este o clima que se respirou no regresso de Scúru Fitchádu ao Porto, desta vez para promover “Nez Txada Skúru Dentu Skina na Braku Fundu”, o mais recente capítulo de uma das mais ousadas e fascinantes aventuras musicais a abençoar o panorama nacional nos últimos anos, um caso extraordinário de criatividade sem filtros onde as vivências únicas do seu criador (Marcus Veiga, também conhecido como Sette Sujidade) motivam a originalidade do resultado final. Entre África e Portugal, entre a raiva punk aliada à subversão eletrónica e o legado imensurável do funaná de Cabo Verde reside este universo inigualável, manifesto de liberdade “cuspido” na cara de quem é demasiado conservador para o entender.
Foi precisamente com a novidade “Nez Txada Skúru” - intro que se apresenta como uma envolvente tapeçaria de eletrónica densa e urgente recheada de palavras que rasgam a pele- que o concerto se iniciou, e logo aí pudemos confirmar as impressões que o novo álbum na altura nos tinha deixado: a fórmula está mais polida e menos lo-fi, orgulhosamente abraçada a elementos de eletrónica e world music anteriormente presentes, mas agora claramente mais visíveis e aprimorados. Evolução natural das coisas, sim, mas sem descurar a intensidade arrebatadora de um projeto que, mais do que simples música, é um supremo grito de libertação, declaração panafricanista pura e sem remorsos debitada com uma impetuosidade feroz. Exemplo disso é “Bakan”, fabulosa descarga de raiva punk imbuída de ritmos dinâmicos e mirabolantes, responsável por um dos momentos mais alucinantes de um concerto que já antes transbordava de energia e suor. Mal conseguimos descrever com palavras a loucura que aqui se instalou, olhávamos à nossa volta e todos se moviam livremente na mais frenética das danças. Foi bonito, acreditem.
Pelo meio, contudo, surgiam temas como “Maria”, inspirado no clássico “Maria, Oh Maria”, dos icónicos Mão Morta, onde a voz rouca e “rasgada” de Marcus convive com percussões evocativas que nos transportam para os ambientes vibrantes e docemente nostálgicos de Cabo Verde, ou “Strada Noti” - canção soberba, tão “quente” quanto temperada com uma melancolia palpável- , a mostrar como este álbum, entre outras coisas, é uma enorme e sentida carta de amor a África, à sua riqueza musical e ao seu legado anticolonial; escrita praticamente com lágrimas espalhadas pelo papel, funciona como um genuíno “obrigado” ao continente que permitiu a Marcus construir a sua identidade pessoal e artística - as duas, como bem sabemos, são indissociáveis e andam lado a lado numa obra tão brutalmente confessional que só nos apetece compará-la a páginas de um diário. Uma reinvenção orgânica que também resultou graças à presença, tanto em estúdio como em palco, de Henrique Silva, dos Acácia Maior e colaborador de Cachupa Psicadélica. A comandar o cavaquinho, a guitarra e as percussões , Henrique revelou-se exímio no modo como deu cor aos manifestos de Scúru, assumindo-se como um fiel companheiro de armas a engrandecer os desabafos crus e apaixonados lançados por Marcus.
Foi então assim, entre a dança libertadora , a fúria catártica e a partilha revigorante - que até incursões pela “Sweet Dreams ( Are Made of These)” dos Eurythmics incluiu - que se ergueu gradualmente uma escultura lindíssima de união (e gratidão, já que o concerto teve lugar numa casa que desde logo soube acolher Marcus, como o próprio referiu) poderosa e inspiradora. Dir-se-ia mesmo que todos os que mergulharam na segurança íntima de um Maus Hábitos transformado em festa africana disruptiva e underground certamente saíram da sala embevecidos com a beleza desta experiência. No final, depois do encerramento inicial com “Treinament”, ainda tivemos direito a uma “prenda ” extra: a interpretação de “Oji Txuba ta Txôbe Molotova”, irrepreensível despedida apoteótica regada com o verdadeiro espírito punk. Suados e emocionalmente espancados , não pedíamos mais…ou melhor.
Para terminar, urge mesmo escrever isto: morte ao racismo, à xenofobia e a todo o tipo de preconceito idiota. Quando a imigração faz nascer projetos com a vitalidade e criatividade de um Scúru Fitchádu, capazes de pôr uma sala a dançar na mais comovente das livres partilhas, a mensagem é simples, e foi mesmo proferida nesta noite em palco: “combate ao fascismo”. Nem mais , carago!!!
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sábado, 23 novembro 2024