Ana Lua Caiano
O cancioneiro português reimaginado em tons de eletrónica , numa música tão evocativa quanto inexplicavelmente atual, deste tempo e de outros que já lá vão, espalhando ondas sonoras contemporâneas alimentadas de inspirações ancestrais. É deste paradoxo construído de forma incrivelmente coesa , diríamos mesmo surpreendentemente espontânea, que vive a música do fenómeno Ana Lua Caiano, que nesta noite conseguiu preencher muitíssimo bem uma sala a transpirar de calor humano e harmonia. À medida que o Maus Hábitos ia enchendo (não chegou mesmo a esgotar, mas longe não esteve), sentia-se gradualmente uma sensação de entusiasmo no ar, a audiência composta tanto por adultos como por crianças (afinal, “de pequenino é que se torce o pepino”, já nos diz o ditado popular) claramente ansiosa pela chegada de Ana Lua. E de forma tão simples quanto graciosa subiu ela ao palco, como quem se dirige não para uma apresentação formal, mas para uma exposição íntima da sua arte. Uma conversa aberta e honesta com quem saiu de casa para com ela dialogar e encontrar significado nessa partilha, numa postura que tem tanto de afetuosa como de delicada, claro está: olhamos para Ana e sentimos que ainda reside ali uma palpável timidez, como se estes encontros - chamemos-lhe assim - motivassem uma maior abertura para o exterior por parte de quem no interior fervilha de ideias, de coisas para dizer e sons para explorar. E se desse “desabafo” - não desesperado, antes puro, honesto e resplandecente - nasce algo tão belo, então a música, mais do que uma bênção, é também uma salvação. Louvemos tão bonita terapia que faz a alma rejubilar, porque sem ela o espírito murcha.
Foi então assim, nesse ambiente de intimidade e descontração onde cada som, cada palavra , eram escutados com atenção e carinho, que Ana Lua nos ia falando sobre si e sobre o que naquele momento justificava análise; ora nos revelava que adora o Maus Hábitos (nós também, já agora, não encontrássemos aqui uma comunidade de divulgação e descoberta musical tão útil para a cidade) e que o visita sempre que vem ao Porto, ora confidenciava que aquilo que estava dentro das garrafas tranquilamente pousadas pelo palco era água e não sumo, ou ia discutindo o conteúdo das músicas, que no caso dela são pequenas histórias que ilustram desabafos , pensamentos e sensações , sempre imbuídas de um registo que oscila entre o popular e o surrealista, fundindo ambos numa destreza verbal prodigiosa. Sim, porque Ana Lua não é só uma compositora com um potencial assustador (sobretudo para a idade, ainda nem chegou aos 24 anos e já atingiu um nível que muitos músicos não alcançam ao longo de uma vida), é igualmente uma letrista fabulosa , transformando observações do quotidiano em divagações poéticas , por vezes quase mirabolantes , que espelham honestidade num formato deliciosamente criativo, naturalmente acessível no modo consciente como tenta escapar ao óbvio.
Depois chegam os sons, sempre decorados com loops vocais que parecem ecoar pelo espaço em busca do infinito, adornados com apontamentos eletrónicos maravilhosamente envolventes, percussões e toda uma panóplia de objetos tradicionais, incluindo castanholas, Sempre ali num abraço eterno e caloroso entre o analógico orgulhosamente tradicional e o digital recheado de possibilidades emancipatórias. É música ao mesmo tempo simples e espantosamente orelhuda - aliás, o refrão de “Vou Abaixo, Volto Acima”, cantado em uníssono a pedido da artista lisboeta, é absolutamente magistral e uma das melhores expressões de criatividade musical a surgir em Portugal nos últimos anos -, mas também cheia de pormenores, de “segredos” que só repetidas escutas permitem descobrir, e de uma inteligência que chega mesmo a ser francamente arrepiante. Ao vivo as composições nem sempre soam iguais à versão de estúdio - “Doí-me a Cabeça e o Juízo”, mostrou-se aqui mais “despida” e menos contagiada pelo fervor daquelas explorações eletrónicas dinâmicas a sugerir uma euforia latente que nunca se atreve a explodir - , mas nunca deixam de soar triunfais no modo como libertam uma paixão revigorante, uma pureza inspiradora e uma luz que nos aquece em tempos cinzentos. Escutamos estas canções - sublimes canções que nunca param de nos agarrar , peguem em “Se Dançar É Só Depois “ e percam-se na sua sedução majestosa , sentimento lusitano adaptado aos dias de hoje com o passado a vislumbrar o futuro - e não restam dúvidas: estamos perante um dos futuros pilares da música portuguesa , alguém para quem o céu é realmente o limite.
Com um alinhamento que percorreu os dois EPs até agora editados - “Cheguei Tarde A Ontem” e o mais recente “Se Dançar É Só Depois”, com espaço para um tema que não pertence a nenhum dos dois trabalhos, intitulado “Vou Ficar Neste Quadrado” - Ana Lua mostrou que o hype que a acompanha é somente o resultado de uma magia bem real, um encanto inebriante que vai florescendo à medida que vamos absorvendo o seu mundo. Terminando a atuação com “Casa Abandonada", acabou por logo regressar para fechar com aquela que se esperava ainda poder ouvir - “Mão na Mão”. Por fim, e com a chuva de aplausos que gloriosamente a “encharcou” ainda presente na memória, deixamos um valioso conselho: Ana Lua pode ter chegado tarde a ontem, como conta no seu EP de estreia, mas urge que não cheguem tarde a hoje… é que o tempo dela , diluído no universo que colheu para si, é efetivamente agora. Celebremos a sua era.
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sábado, 23 novembro 2024