A Lovers Faz 18
Foi precisamente há dezoito anos que a Lovers & Lollypops deu início a uma “brincadeira” melómana que poucos (incluindo eles próprios) imaginavam que algum dia pudessem chamar carreira: de concertos em caves a salas esgotadas , de utopias festivaleiras em Barcelos a odisseias revigorantes na ilha de São Miguel, para não falar num conjunto de discos brutais, são quase duas décadas de intensa descoberta , diversão e camaradagem, como uma pequena família que se reúne para escutar um som e criar memórias em conjunto. Pouco vulgar, é certo, mas é assim que se celebra o inconvencional, pegando no slogan deles , e deixamos já claro que não quereríamos de outro modo… porque de outro modo não curtiríamos milhões.
Curiosamente, não deixa de ser particularmente convencional celebrar uma data como os dezoito, mas aqui o importante nem era assinalar um aniversário redondo só para dizer que a ocasião não foi esquecida, mas antes comemorar tudo o que essa efeméride representa. Isto porque a Lovers enfrenta agora um desafio interessante: o de serem uma promotora “veterana” quando outrora foram jovens idealistas, “filhos” da internet e da era do Myspace (onde isso já vai), cheios de vontade de mostrar o que iam descobrindo com quem se mostrava aberto a essa partilha . E se a inocência , ou mesmo a “frescura” desses tempos já não passa de uma doce memória arquivada, não há razão para o futuro não ser igualmente risonho.
Foi então assim, entre o respeito pelo passado e o entusiasmo pelo futuro, que se comemorou este aniversário originalmente marcado para Barcelinhos e entretanto alterado para a Associação de Moradores da Bouça. Apresentando um cartaz que funcionou, essencialmente, como uma montra contemporânea do catálogo da Lovers, sentiu-se falta de um pouco mais de nostalgia na programação - tirando os Black Bombaim, símbolo máximo do período fértil da cena de Barcelos. Talvez uns Glockenwise ou uns Kilimanjaro, também eles conterrâneos dos BB, tivessem preenchido bem essa lacuna.
Contudo, se o evento na teoria parecia “incompleto”, na prática acabou por resultar muitíssimo bem .Quer dizer, começar logo com a jarda dos Black Bombaim, o mítico trio de Barcelos que agora regressou para um pequeno ciclo de concertos, foi um estupendo tiro de partida. Máquina ainda incrivelmente oleada , dispararam uma pujante sessão de psych marado banhado no calor de um stoner ardente, entre guitarras fogosas a sentir o pedal e uma seção rítmica bem musculada. O resultado foi um potentíssimo festão , eletrizante exploração instrumental cuspida em modo eufórico e implacável. Até deu gosto, caraças ,sentimos cada riff e solo a invadir a pele para nos acariciar a alma. Em êxtase total, aguentávamos mais uma hora desta rockalhada suprema. Barcelos na veia, Black Bombaim a dominar.
Possivelmente influenciados por esta jarda revigorante, permanecemos num estado de espírito elevado, sendo que foi assim que assistimos ao melhor concerto que já vimos da Inês Malheiro desde a edição do amplamente elogiado “ Deusa Náusea”. Num local agradavelmente intimista (a programação dividiu-se entre este palco montado no exterior e o maior da sala principal), as oníricas explorações de eletrónica surrealista e manipulações vocais soaram particularmente soltas , quase poéticas, com um sopro fantasmagórico de extrema envolvência. O final, com a presença de uma guitarra e um coro de jovens que com ela versaram sobre as qualidades de um cão chamado Jamie, foi a cereja no topo do bolo. Levemente insólito mas sempre reconfortante, Inês Malheiro embalou as almas que procuravam descansar.
E o que dizer de Sereias ? Que foram uma tempestade de intensidade colossal, é tudo o que precisa de ser dito. Se os discos já sugerem uma clara apetência para ambientes de alta violência sonora, ao vivo transformam-se num visceral - e viciante - coletivo de noise punk. Liderados por um António Pedro Ribeiro que parece estar sempre consumido por um inconformismo incontrolável, quase como um poeta a espalhar raiva como balas que perfuram a pele, debitaram ruído endiabrado no mais furioso manifesto punk da tarde- que até menções ao STOP incluiu. Aterradoramente performativos, mas genuínos em ambos os ataques - o instrumental e o verbal-, lançaram indignação selvagem que puniu os tímpanos e fez gelar o sangue. Sem merdas , com toda a atitude.
Logo a seguir tivemos direito a um momento bem bonito em que se cantou os parabéns à Lovers e comeu-se um belo bolo. Claro, ainda não tinha tudo terminado, mas supomos que esperar pelo fim seria , lá está, demasiado convencional. Além de que era hora do lanche.
De estômago aconchegado fomos lá para fora assistir à colaboração do dia , aqui entre Ece Canli e dois membros de Solar Corona. Com estes últimos bem mais próximos do formato Elektrische Maschine, assistimos a uma sessão de kraut com um palpável toque industrial, em que os experimentalismos vocais de Ece (que a certa altura assumiu também a guitarra) decoraram paisagens sonoras de sabor esotérico, com tanto de ruidoso como de atmosférico. Faltou um ambiente mais apropriado para este tipo de som- uma sala escura com luzes potentes e um mar de gente a mover o corpo- , mas há aqui um potencial que pedimos imenso que seja explorado. Não o aproveitar seria um desperdício.
A terminar os concertos antes do DJ Set (a cargo de Patrícia Brito e DJ Fitz) estiveram os Conferência Inferno, caso sério de popularidade no panorama nacional - que o digam todos aqueles que incansavelmente pularam e dançaram nas filas da frente, saboreando a onda vibrante de uma música simultaneamente evocativa e contemporânea, em que o espírito de pérolas não vividas mas posteriormente assimiladas (o Independança , dos GNR, é uma referência incontornável) é reproduzido em tons modernos para a realidade atual. Entre um synth punk pujante e fervororoso que respira ares boémios e uma certa sensibilidade pop nos novos temas (o próximo álbum sai já em outubro), fecharam com a mirabolante “Apocalipse” uma atuação que até ficou ligeiramente aquém de outras que já vimos deles , mas que não deixou de contagiar, sobretudo na apoteose dos momentos finais . Mais do que se inspirarem em legados passados, vão gradualmente criando o seu… Esta é a era dos Conferência, o hoje e o amanhã pertencem-lhes.
Nota editorial: Aproveita-se também para dar os Parabéns à Lovers de toda a equipa do Festivais.pt🎂
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sexta-feira, 28 julho 2023