Crocodiles + The Magickal Misery Tour

Muitas vezes descritos como os The Jesus and Mary Chain de San Diego, os Crocodiles visitaram a cave da Socorro como parte da tour europeia de promoção ao mais recente “Upside Down in Heaven”. Uma oportunidade rara, portanto, de ver os californianos num local que é loja de discos, livraria e também sala de concertos, o que efetivamente deu a esta matiné um caráter altamente intimista e uma proximidade quase surreal - entrávamos na loja ou circulávamos pela cave antes do concerto e ali estavam eles, possíveis meros clientes para quem não soubesse melhor, mas na realidade anfitriões do que seria uma tarde de riffalhada bem pujante.

E se curiosidade havia para testemunhar este regresso, persistia também um certo medo de que o retorno não correspondesse às expectativas - ou a dúvida de se seria sequer sensato cultivá-las. Não é que o grupo não seja talentoso- as comparações aos autores do lendário “Psychocandy” existem por muito boas razões- , mas a verdade é que as visitas anteriores pareciam nem sempre reunir consenso. Falava-se com quem os viu em Coura ou quem esteve no Hard Club e a resposta era muitas vezes a mesma: “desiludiu um bocado” ou “esperava melhor”. No final, fosse pela atmosfera íntima e despojada a servir de inspiração ou o simples resultado da boa fase que claramente atravessam, os Crocodiles não só estiveram bem… como deram uma festa do caraças.

Com a audiência a chegar-se perto do palco a pedido da banda, o que fez com que a sala bem composta mas não lotada parecesse até mais cheia, o grupo não perdeu tempo e imediatamente destilou rockalhada da boa -um noise pop injetado de psicadelismo com sabor refrescante a surf rock, vibe notória até no look que a banda ostentava com aqueles óculos escuros a pintar ondas de verão. Rockeiros “soalheiros” do mais alto nível, os Crocodiles debitaram guitarradas ruidosas envoltas em melodias orelhudas altamente viciantes, como se o noise possante encontrasse conforto no punk dos Ramones. Aliás, recordem o clássico estupidamente irresistível de uma “Rockaway Beach”, com aquela simplicidade jovial que até rejuvenesce a alma, e depois voltem para os Crocodiles… a energia melódica desenfreada é bastante semelhante, mesmo que os nosso amigos californianos a levem para campos diferentes, sonoramente mais “densos” e desafiantes na postura que exibem.

Acima de tudo, isto foi uma dose bem alta e apunkalhada de um rock a sentir o pedal em toda a sua selvajaria de distorção, absorvido com intensidade e descontração na proximidade de uma cave suada. Celebração eufórica indeed , até porque era também o aniversário do baterista Diego, a quem se cantou os parabéns com uma alegria tão orgânica que o homem até parecia nosso amigo. Foi bonito, foi genuíno, foi bem divertido. Quando saíram pelo meio do público, tinham sido rock até ao osso… Que voltem com a mesma atitude, pois é assim que os gostamos de ver.

Mas antes houve mais , e o que aí tivemos foi uma verdadeira pérola que não ousamos ignorar. Falamos dos The Magickal Misery Tour, projeto a solo de João Martins (muito bem acompanhado por Fábio Pereira a assegurar com eficácia as linhas de baixo), membro dos Summer of Hate, que passaram recentemente pela Socorro e que devem precisamente o seu nome ao álbum de estreia dos Crocodiles. Um concerto que foi, acima de tudo, a concretização de um sonho de fã, e cuja entrega - musical e ideológica , pois não faltou a veemência dos discursos em prol do STOP debitados em modo de alma punk destroçada - foi tão emotiva e honesta que nos deixou francamente embevecidos . Imaginem um shoegaze a transbordar de força etérea apoiado em camadas de noise inebriantes, tudo isto explorado até à exaustão num minimalismo rítmico extraordinariamente hipnótico que parece querer abraçar o krautrock (o uso de uma caixa de ritmos contribuiu imenso para esse feeling de transcendência maquinal). Enfim, autêntica jarda de sabor atmosférico que nunca deixou de soar simultaneamente impetuosa, e que se traduziu numa viagem brutalmente estimulante. Por muito bem que os Crocodiles tenham estado ,residiu aqui a grande surpresa do dia, pelo menos enquanto revelação. Puramente revigorante, para sempre no coração.