Missa dos Laicos de Saliva Diva
Sempre imparável no seu empreendedorismo underground, a Saliva Diva viajou até Matosinhos para mais uma estreia de uma nova matiné - desta vez no café - concerto do Teatro Constantino Nery, em pleno Dia Mundial da Música e com um cartaz que exibiu algumas das recentes apostas desta pequena editora em clara expansão.
Contudo, temos antes de prezar o espaço escolhido para este domingo musical: airoso, relaxante e docemente informal sem perder o seu encanto orgânico, instala logo uma onda de descontração em quem o visita; mesmo que a acústica nem sempre tenha sido a melhor, a atração estética foi suficiente para que queiramos lá voltar.
E foi precisamente sob esse espírito de serenidade soalheira que entraram em cena os Nile Valley, autores de um som perfeito para este cenário: um r&b caloroso entrelaçado com um trip hop suave, que tanto nos remete para o conforto urbano de uma Arlo Parks( o facto de estarmos a meros minutos do recinto onde a coqueluche britânica actuou no Primavera não passou despercebido), como para os ambientes inebriantes e suavemente sedutores de uns Morcheeba circa 1998, por alturas do seminal Big Calm. Na verdade, a voz da vocalista Teresinha Sarmento parece por vezes evocar o timbre de Skye Edwards, mesmo que noutras alturas vá mais longe no seu registo, no cruzamento entre a mestria de uma formação musical cuidada e a luminosidade de quem também canta com o coração. Juntam-se a isto as linhas de baixo habilidosas e bem recheadas de Ricardo Martins (aliás, o baixo aqui funciona frequentemente como o “ motor” que faz as músicas andar, autêntico ritmo impulsionador de vida sonora) e as programações de João Almeida, e o resultado final é uma brisa refrescante que faz a alma gradualmente florescer. Alternando entre temas da estreia “ Floating Lines” e novidades por gravar, os Nile Valley proporcionaram um arranque agradável para esta matiné - calmo e revigorante , como um sonho em tempo real.
Seguiram-se os Palmiers, aqui já a beneficiar de luzes que muito ajudaram a criar o ambiente excitante que a música do coletivo pede - um psicadelismo “colorido” e vibrante numa espécie de rock atmosférico e “reluzente” abraçado aos ritmos quentes da tropicália. Evocativo sem soar nostálgico, aventureiro sem deixar de ser coeso, o som do quarteto portuense espalhou uma jovialidade revigorante em clima de celebração idílica, como um sol aconchegante a adoçar uma tarde de verão. Um concerto tão divertido quanto acolhedor, que a certa altura mais parecia um convívio de amigos no conforto de um apartamento intimista. Sentia-se mesmo uma certa magia no ar, como uma utopia comunitária em regime de apreciação melómana - difícil de explicar, impossível de não sentir. Mas foi bom, foi fun, foi bonito. Como diziam os The Beach Boys: “I'm pickin' up good vibrations”.
A encerrar estiveram os Marquise, força luminosa que debita um rock fortemente enérgico com espaço para melodias “açucaradas”, como se a garra do grunge à Nirvana( sempre presente, não é?) renascesse na doçura de um pop punk 90s. A voz de Mafalda Rodrigues é simultaneamente potente e graciosa , ali entre a delicadeza etérea e a entrega vigorosa, numa postura deliciosamente rockeira que espalha ares de uma fragilidade inquebrável. A pessoa perfeita , portanto, para dar voz às composições do grupo - diretas e rasgadas, como a personificação sonora de uma juventude vital. Há espaço para melhorar e ainda precisam de amadurecer, mas o potencial desta malta é honestamente assustador: olhamos para eles e até para o modo como já parecem ter reunido um grupo de fiéis ( esgotaram o Maus Hábitos no mês de Julho, the hype is real) e ficamos com a sensação de estarmos perante um futuro fenómeno aqui, como se daqui a uns anos pudéssemos recordar este concerto como os primórdios de um legado em construção. O som nem sempre se mostrou tão cristalino quanto teria sido desejável( já nos Palmiers tínhamos notado isso, na verdade) e quando Mafalda pedia que nos aproximássemos para levar com a jarda bem na frente, mais visível se revelava a falta de definição. Todavia, no final isso pouco interessou, pois testemunhamos aqui uma rockalhada pujante de uma pureza inspiradora - e que chegou mesmo a incluir um trecho da “Bulls on Parade” dos Rage Against the Machine( não vos dissemos que esta malta é 90s até ao osso?). Enfim, os Marquise deram tudo, e muito mais darão. O espírito das malhas irresistíveis está com eles, são uma esperança magnificamente promissora.
E terminada esta Missa dos Laicos, resta dizer que louvada seja a Saliva Diva - pelo esforço na organização destas matinés e a dedicação incansável a uma causa bem simples:o amor à música e a todo o espírito de interação DIY que o underground consegue fazer nascer.
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Organização:Saliva Diva
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domingo, 08 outubro 2023