Entrevista Filho da Mãe
Rui Carvalho, com o seu projecto Filho da Mãe, já há muito que se tornou num dos mais admirados e conceituados artistas do panorama musical português. A música pode ser instrumental, mas os acordes que cria com a sua guitarra contam histórias e levam-nos em encantadoras viagens do qual nunca nos cansamos. Na altura em que acaba de lançar o novo disco, intitulado “Água-Má”, fomos falar com Rui sobre o álbum, os concertos de apresentação, o estado do Teatro Maria Matos e muito, muito mais…
Vamos iniciar a entrevista por discutir o teu novo disco, que se chama “Água-Má”; porquê esse título? Tem a ver com o facto de ser sinónimo de alforreca ou há algo mais?
Rui: O título tem somente a ver com o facto de ser um segundo nome para alforreca, palavra que foi escolhida por mero acaso. A capa é mais uma ilustração da Cláudia Guerreiro, que é quem normalmente trabalha comigo na parte da imagem dos discos, e foi escolhida especificamente porque ela fazia os cartazes para a Casa Independente, e eu ensaiava lá… a certa altura ela criou esta ilustração e como ia parar de colaborar com eles na elaboração dos cartazes e eu também ia sair de lá, pensei que era um fim de alguma coisa que podia ser o princípio de outra. Seleccionei então a capa por ter gostado muito dela mas sem ter ainda noção do disco e do que este ia ser.
Pensei, curiosamente, que até pudesse estar relacionado com o facto de ter sido gravado parcialmente no arquipélago da Madeira…
Rui: Não, isso foi somente aproveitado. Assim que soube que ia lá gravar, espetei aquilo na parede e comecei a compor e a tentar tocar com essa imagem na cabeça, o que não creio que tenha ajudado necessariamente, mas pronto. No entanto, não havia ainda um conceito, havia somente a imagem. Estas coisas são engraçadas, envolvemo-nos tanto na nossa rotina e de repente apercebemo-nos que aquela imagem que tínhamos desde o início é perfeita. Todavia, foi algo a posteriori; eu ter ido à Madeira foi um acaso, podemos dizer que me deixei levar pela corrente, que é exactamente o que as alforrecas fazem. No fim, acabou por ter tudo a ver com essa alforreca que estava na capa desde o início.
Já reparei que é uma espécie de hábito teu, uma tradição, digamos, realizares estas residências artísticas - o “Mergulho”, por exemplo, foi gravado no Mosteiro de Santo André de Rendufe. O que te leva a embarcar nestas aventuras? Sentes que desperta a tua criatividade?
Rui: Pode ser isso, ir para um sítio potencialmente desconfortável pela incerteza que gera, por não sabermos aquilo que tem para dar, se vai haver problemas ou não… por exemplo, nesta casa havia chuva, cães, enfim, diversos ruídos…
Podemos então dizer que estas residências nem sempre oferecem o clima de paz e sossego ao qual normalmente estão associadas…
Rui: Não, isso não! Em Rendufe, no sítio que referiste, havia sinos! Tivemos sorte porque não choveu, ainda assim. A questão passa por saberes adaptar-te ao ambiente que te rodeia – nesse caso aos sinos, aqui aos cães e à chuva - mas eu estou mais ou menos habituado e tenho feito as coisas sempre assim. Logisticamente, não é muito complicado para mim pegar numa guitarra e deslocar-me a um sítio qualquer para gravar. No caso de Rendufe houve um estúdio que basicamente se encaminhou para Amares, mas aqui foi uma coisa mais comedida; contudo, no final, o resultado acaba por ser sempre o mesmo. Com uma guitarra interessa-te a captação, a qualidade acústica, sendo que tanto posso gravar num estúdio como fora. Estou interessado sobretudo na componente psicológica da coisa: do ponto da vista da composição tudo é muito subjectivo porque eu tanto posso compor num sítio como noutro, mas a parte psicológica de encontrar um disco num sítio diferente é algo que pode ser bastante interessante. Não estivemos lá muito tempo, na verdade - e eu já tinha grande parte do material – mas não tinha uma história. O local acabou por ajudar nisso.
Isso lembra-me algo que li numa entrevista a uma artista chamada Kelly Lee Owens, em que ela referia a importância da geografia no processo de composição, e como estar num local específico acaba por influenciar o teu trabalho…
Rui: Sim, mas não tanto do ponto de vista da pesquisa musical, acho. Tem mais a ver com algo que sentes a partir do momento em que lá estás, encontras uma história que não tinhas pensado. Eu não sou de deixar as coisas muito “fechadas” antes de ir gravar, o meu percurso é precisamente o oposto disso: tenho o defeito de deixar tudo em aberto quando vou gravar, o que num estúdio pode ser problemático pois tens as horas contadas, sobretudo se estiveres na tua terra: às seis horas tens que sair, tens o miúdo, a comida para fazer e tudo mais, e acabas por não te distanciar daquilo que é um dia de trabalho normal. Saíres desse espaço leva-te para uma espécie de bolha, um mundo um bocado irrealista onde tudo é possível. Acima de tudo é também mais divertido – a verdade é essa! A geografia, lá está, acaba por ter um peso considerável nisto tudo de um modo que é um bocadinho difícil de explicar. Não te consigo dizer exactamente em que é que a Madeira influenciou, mas sei que se estivesse estado noutro local qualquer não seria o mesmo, seria algo diferente.
É curioso porque há uma música no disco que se chama” Os meus ombros chumbaram a geografia” por causa disso mesmo, porque eu confundo as geografias todas umas com as outras, não tenho propriamente um sítio. Há no disco coisas mais africanas misturadas com outras que são inegavelmente portuguesas ou até sons de natureza sul-americana… mas não se houve música da Madeira no álbum.
Isso vem um pouco na sequência do que eu ia perguntar a seguir: em que aspectos consideras que este disco apresenta algo de novo e diferente comparativamente aos anteriores?
Rui: Bom, não será a questão das influências africanas pois sinto que isso é algo que me persegue há já muito tempo, de outras bandas em que se calhar não se ouvia tanto essa influência, mas onde ela estava presente já que eu ouço música africana desde sempre. Quando falo aqui em música africana é mais subsariana – eu não tenho bem a certeza, mais uma vez, pois chumbei a geografia (risos), mas há algo desse género - do Mali, do Níger, coisas assim. No entanto, se ouvires o “Cabeça”, o “Mergulho” ou o disco que eu gravei com o Ricardo Martins, esse elemento africano tem sempre lá estado. Passa agora é a estar presente de forma diferente, esteticamente falando.
Todavia, não diria que reside aí a parte nova, acho que isso se reflecte mais na composição, no sentido de as músicas estarem orientadas para serem tocadas de trás para a frente, principalmente a primeira parte do disco. Falamos de um álbum que inicialmente só tinha 25 minutos. Foi apenas quando cheguei à Madeira que compus a outra parte que, na minha opinião, se distingue mais. Vejo este álbum como sendo muito menos à base da canção, tem mais força rítmica, é algo um bocadinho mais próximo da pele. Ainda assim tem pontos em comum com o anterior, até porque eu gosto sempre de traçar essas linhas de um disco para o outro.
Sim, até porque tem de haver uma continuação lógica…
Rui: Exacto, há quem queira criar rupturas, o que é legítimo, eu fiz isso no disco que gravei com o Ricardo Martins, mas neste trabalho isso não acontece propriamente, existe uma continuidade.
A primeira parte é bastante diferente, mas na segunda, a partir da música “Perseguição de bananas”, há ali um voltar ao “Mergulho”. Contudo, a nível sonoro, e mesmo na forma como foi gravado, acaba por oferecer algo novo, a meu ver.
Li um comunicado relativamente a este novo trabalho onde referias tratar-se de um disco cheio de influências clássicas mas tocado “ à punk-rock”. Tendo em conta que não possuis efectivamente formação clássica, existe aqui uma tentativa de te distanciares do conceito de virtuosismo associado ao teu universo musical? Sentes que é isso que define o teu projecto?
Rui: O que define o meu projecto… curioso que já me perguntaram isso algumas vezes e é sempre um pouco difícil de explicar. Podia dizer que sou eu a tocar guitarra, eu com as merdas que tenho na cabeça na altura a fazer música – basicamente é isso. É algo muito pessoal, portanto, algo que é meu e que passa ou não para as pessoas. Contudo, se estiveres a falar de características sonoras, então o que mencionaste agora será uma delas. Essa ideia do punk rock foi dita de sorriso aberto porque efectivamente não é punk, não possui o mesmo tipo de emoção, mas a forma como é tocado acaba por ser semelhante. A minha escola até vem mais do post-hardcore e do post-rock, e isso depois é trazido para aqui, para uma guitarra que já toco há imenso tempo, mas efectivamente não existe esse lado extremamente virtuoso porque eu não tenho essa formação; mesmo que quisesse buscar esse virtuosismo não ia ficar como queria porque não tenho nada a ver com isso. Contudo, a questão do punk rock funciona como uma “cor”, digamos assim… tem mais a ver com a atitude que tenho com a guitarra.
Falando agora dos teus concertos de apresentação: um deles, o de Lisboa, tem como local o Teatro Maria Matos, que a partir de Setembro vai ser gerido por agentes culturais privados. Achas que isso vai fazer com que a actuação adquira um carácter mais emotivo?
Rui: Vai sim, e ainda bem que me fazes essa pergunta! Uma das coisas mais importantes para mim neste disco é a parte do Maria Matos, porque tem alguma coisa de “casa”. O álbum para mim, independentemente do nome e de tudo o resto, cheira-me a casa, há ali algo de familiar. Há uma música que se chama mesmo “Casa” e que se refere ao local onde eu gravei, há a história da Casa Independente que eu já te contei, há a casa chamada HAUS onde eu fui para tentar ver se o disco saía, há a casa onde eu compus a maior parte do disco, a casa onde estive de férias e onde criei a primeira música chamada “Praia”… e depois há o Teatro Maria Matos. É um local muito importante para mim enquanto músico e é uma pena vê-lo desaparecer, ainda que não seja oficialmente, de forma física.
O que eu acho que deveria ter sido mantido, mesmo mudando em, digamos, 70% o caminho, era 30% daquilo que foi feito, porque foram 10 anos de programação que eu acho que funcionaram bem em Lisboa. Não estou a dizer que tenha tocado toda a gente e que o mundo vá acabar. Não sou contra a gestão privada da cultura, nada disso, mas tínhamos ali um bom exemplo de algo que podia manter-se e que continuaria a fazer sentido em Lisboa.
Sei que existe em Lisboa um “gap”, um vazio, que aquele teatro ia preenchendo. O molde de investimento - neste caso, público - ajuda a que não haja pressão para vender bilhetes da mesma maneira. No entanto, os bilhetes vendiam-se, havia público. Não sei, a mim faz-me um bocadinho de confusão que aquilo desapareça, mas por outro lado as coisas às vezes são mesmo assim. Para mim é bom participar no grupo de músicos que vai dizer adeus a esta gestão do Maria Matos- vai deixar saudades e fazer falta.
Claro, é sempre uma pena quando uma sala fica com o seu futuro indefinido…
Rui: Sim, claro, e tenho de acrescentar mais coisas! Por exemplo, é uma zona da cidade – isto para quem a conhece - que não faz necessariamente parte das áreas ao qual as pessoas se deslocam para eventos culturais, e no entanto a sala ia sendo preenchida com estes concertos. Isto é algo que demora tempo – dez anos, neste caso - e de repente tudo muda. A vida continua, mas é uma pena – até para as pessoas que lá trabalhavam, mas isso é o aspecto sindicalista sobre o qual eu não me alongarei porque vou fazer merda - mas do ponto de vista da programação parece-me uma má escolha, porque estas são aquelas coisas que convém preservar ou, pelo menos, mudar aos poucos, não desta maneira como se nunca tivesse existido.
“O álbum para mim, independentemente do nome e de tudo o resto, cheira-me a casa, há ali algo de familiar.”
Aproveitando o tema, como olhas para o actual panorama musical a nível de bandas, promotoras e salas?
Rui: Ora bem, eu não tenho assim uma visão tão abrangente para dizer o que está bem e mal, mas vou ser positivo e dizer que, do ponto de vista musical, as coisas estão mais saudáveis do que estavam antes. Existe uma cena mais ampla e diversificada que encontra mais sítios – inclusive nos meios de comunicação – para se expor, mesmo aquela mais alternativa e menos conhecida. Os próprios festivais incluem muito mais bandas portuguesas, por exemplo.
Diria que o único defeito é que a chamada “música de nicho” desapareceu um pouco… antes o pessoal do metal, do hardcore e afins sabia os fóruns ao qual tinha de ir, e no caso da malta do hardcore, os concertos que estavam a acontecer… agora acho que isso se perdeu um pouco.
No geral, ainda assim, está tudo muito melhor; antes ignorava-se largamente a produção nacional e tinhas bandas já com tours europeias que não apareciam em lado nenhum, como se não existissem. Creio que agora as coisas estão melhores. Sinto que há ainda muitas dificuldades para conseguir marcar bandas, para conseguir ter salas, mas as condições em geral evoluíram.
Por mera curiosidade, há alguma banda/artista emergente que gostes de ouvir e até com quem gostasses de trabalhar futuramente?
Rui: Sim e não. Há muita gente com quem gostava de trabalhar, mas eu tenho um problema: durante um tempo desligo-me completamente do que se está a passar a nível de bandas – não sei se devia fazer isso, na verdade, não sei se é muito saudável…
Mas isso acontece essencialmente quando estás a gravar, não?
Rui: Sim, antes e depois. Desligo um bocadinho das novidades que vão aparecendo e até faço quase questão de não ouvir… não sei bem porquê…
Se calhar queres evitar ser indirectamente influenciado…
Rui: Influenciado, sim, tocado de alguma maneira… sim, pode ser isso efectivamente. No entanto, depois deste período de apresentação dos discos, de dar os meus concertos, ligo-me novamente, mas ando sempre um bocado atrasado.
Já tiveste oportunidade de participar nos chamados “ filmes- concertos” em que estás basicamente a tocar enquanto o filme passa. Fizeste isso, por exemplo, para o filme “ O Gabinete do Dr. Caligari”. Trata-se de um campo artístico que gostarias de explorar mais no futuro?
Rui: Sim, também já fiz isso, por exemplo, para o Museu do Douro com um trabalho que se chamava “Mundo do Douro” (nota: o nome da peça era“ Gigantes do Douro”). Tenho feito isso algumas vezes ao vivo e gosto muito de trabalhar com imagem, é algo que me fascina.
O quão difícil é, já agora, teres de arranjar música que ligue bem com a atmosfera do filme?
Rui: Isso lembra-me uma coisa que eu fiz com um amigo meu chamado Óscar, que é o Jibóia, para as Curtas de Vila do Conde com um filme muito antigo que retratava uns índios norte-americanos; aquilo era profundamente bizarro, como se tivesses mandado uns cogumelos muito manhosos e tivesses ficado ali a tripar o resto do tempo. Ora, arranjar uma atmosfera para isso é extremamente complicado, mas ao mesmo tempo a liberdade é profunda. Nós encaramos essa tarefa – ou pelo menos no meu caso é assim - como um desafio. É por vezes difícil por causa do tamanho, era um filme muito longo e é bastante complexo com a minha música tornar tudo interessante sem ficar maçador a certa altura. Por outro lado é algo que se faz ao vivo de forma meio improvisada e performativa, e acaba por funcionar bem por causa disso mesmo.
Em relação aos teus concertos de apresentação, o que podemos esperar?
Rui: Bom, eu toco sempre o álbum na íntegra… talvez assim acabe por ser menos heterogéneo, mas eu gosto de contar a minha história, neste caso a da Madeira, e gosto de a contar toda. Claro que não será só isso, haverá mais, mas o concerto é essencialmente eu sozinho no palco a interpretar aquilo que fiz em estúdio; nunca é exactamente igual, mas é parecido.
Obrigado ao Rui, por nos conceder esta entrevista.
Dica para os leitores: Filho da Mãe actua hoje no Ateneu Comercial do Porto. Os bilhetes custam 6€ ou 10 € com CD
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segunda-feira, 17 fevereiro 2020