Reportagem Anohni em Lisboa
O que Anohni (anteriormente conhecida como Antony Hegarty) trouxe a um Coliseu de Lisboa demasiado vazio não foi bem um concerto: foi uma poderosa experiência sensorial que combinou performance e filme. Num espetáculo curto e perturbante – integralmente baseado no novo álbum (“Hopelessness”) e em alguns temas não editados - o resultado final poderá não ter gerado consenso na plateia mas traduziu de forma exemplar o sentido de urgência tão presente no seu primeiro disco a solo.
Foi estranhamente reduzido o número de pessoas que acorreram ao Coliseu de Lisboa (com as bancadas praticamente despidas, apenas a plateia sentada esteve bem composta) para testemunhar um regresso que em certo sentido foi uma estreia. Em “Hopelessness”, seu quinto álbum de estúdio lançado no mês passado, o líder dos Antony and the Jonhsons passou a assinar como Anohni. A mudança para um nome mais feminino já se antevia no tema “For Today I am a Boy” (2005), no qual prometia “one day I’ll grow up, I’ll be a beautiful woman”.
A artista assume agora também uma sonoridade distinta, assumidamente virada para a eletrónica experimental. Em anteriores passagens por Portugal habituamo-nos a vê-la sentada ao piano ou, mais recentemente, acompanhada por orquestras sinfónicas. Desta vez pontificaram as mesas de mistura e os laptops, através dos quais Christopher Elms e Oneohtrix Point Never foram construindo densas camadas sintéticas, que por vezes fizeram lembrar de Bjork nos tempos de “Homogenic”.
Ao vivo, a temática da desesperança que o título do álbum prenuncia é apresentada como uma espécie de instalação artística. Quem chegou cedo ao Coliseu foi recebido com um intrigante som gravado em loop (seriam ventos fortes, ondas da maré, trovoadas?) que se intensificou no início do espetáculo, quando Naomi Campbell surgiu no ecrã gigante colocado por detrás do palco. A preto e branco, as imagens mostravam a top-model envergando na cabeça uma coroa pontiaguda, como se encarnasse a estátua da liberdade, deixando escapar alguns sorrisos enigmáticos enquanto ensaiava lentos e sensuais movimentos de dança num local abandonado. A dança ao som daquela composição abstrata durou mais uns longos vinte minutos, instalando a dúvida e prendendo desde logo a atenção de todos os presentes.
Quando a imagem da modelo inglesa finalmente se desvaneceu, dois homens assumiram o comando das maquinarias, abrindo as hostilidades com o tema que dá nome ao novo álbum. A voz cristalina de Anohni fez-se então ouvir mas a artista não estava em palco. No ecrã surgiu o rosto ensanguentado de uma mulher com um movimento de lábios perfeitamente sincronizado com as palavras de Anohni, como se a sua voz estivesse separada do seu corpo. Curiosamente, esses mesmos lábios deixaram de mexer durante o verso “how did I become a virus?”, no que poderá ser interpretado como um assumir de culpas por parte da própria artista, confessando-se como parte do problema que quer solucionar: o genocídio ecológico.
A ausência de Anohni no tema de abertura foi um claro sinal de que estaria disposta a anular-se para que todas as atenções se centrassem na mensagem política transmitida pela sua voz e “cantada” pelas protagonistas do filme que acompanhou cada um dos temas. Assim, ao longo da noite deu voz a quase duas dezenas de mulheres cujas expressões faciais fizeram transparecer sentimentos de amargura, desilusão, desespero, arrependimento, raiva e frustração perante a atual ordem política.
Após o tema inicial, Anohni subiu ao palco para interpretar o majestoso single “4 Degrees” mas ao longo da noite a sua presença foi quase anónima: não se dirigiu ao público por uma única vez e apresentou-se vestida com uma longa de túnica branca com capuz, luvas a condizer e cara sempre tapada por um lenço preto. Porque verdadeiramente o seu rosto era o de cada uma daquelas mulheres sofridas. A sua atuação em palco foi discreta, optando frequentemente por um posição mais recuada em relação aos outros dois músicos e só pontualmente chegando-se à frente do palco, ora percorrendo-o, ora ensaiando movimentos dançantes, ora mexendo os braços em poses teatrais que acrescentaram dramatismo à performance.
Em pouco mais de uma hora, desembrulhou todas as canções do novo disco e, pelo meio, apresentou cinco temas inéditos que se enquadraram perfeitamente na narrativa. E nem o facto de o catálogo dos Antony and the Johnsons ter sido ignorado fez esmorecer uma plateia que se deixou contagiar pela experiência e retribuiu com fortes aplausos entre músicas, justificando plenamente a expressão “poucos mas bons”.
Sublimado pela incrível expressividade de cada rosto projetado no filme, o conteúdo lírico das canções foi traçando um diagnóstico negro, à medida que eram identificados vários sintomas malignos: o capitalismo selvagem sem respeito pelo meio ambiente e pelos mais desfavorecidos (“Hopelessness”, “4 Degrees”, “Marrow”), a perda de privacidade em nome da segurança (“Watch Me”), a violação de mulheres na Índia (“Indian Girls”) a prática da pena de morte (“Execution”) e a política imperialista americana (“Crisis” e “Obama”, tema em que a sua voz mudou intencionalmente para um registo mais grave). Foram sucessivos gritos de alerta, proclamados de forma direta e contundente mas misturados com generosas doses de ironia e sarcasmo.
No derradeiro capítulo do espetáculo (“Drone Bomb Me”) a imagem de Naomi Campbell regressou ao ecrã. Só que a sua expressão era completamente diferente da que tínhamos visto no início. Já não trazia a coroa da liberdade na cabeça e do seu rosto outrora sorridente corriam lágrimas, à medida que encarnava o apelo de uma criança afegã implorando morrer com uma bomba tal como sucedeu com os seus pais.
Foi (quase) o último murro no estômago. Faltava só mais um. Anohni sentou-se no chão e, virada para a tela gigante, assistiu connosco a um breve excerto da curta-metragem “Collisions” dirigida por Lynette Walworth. Nessa passagem, a aborígene Ngalangka Nola Taylor interrogava com pertinência: “What is happening to the world, is it going to get better or worse?”. Mesmo depois do brutal abanão provocado por Anohni, a pergunta permanece sem resposta. Mas agora, mais do que nunca, a bola está do nosso lado. Vamos a isso?
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Organização:Sons em Trânsito
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sábado, 25 junho 2016