Reportagem Benjamin Clementine em Lisboa
A paixão dos portugueses por Benjamin Clementine não revela sinais de abrandamento. O Coliseu de Lisboa voltou a encher para o receber, num concerto finalmente em nome próprio que durou quase duas horas com uma quinzena de canções e dois encores. Ora sozinho, ora fazendo uso de seis instrumentistas, o músico inglês confirmou créditos, desvendou temas inéditos e até se aventurou a cantar na língua de Camões.
Nem um atraso de vinte minutos fez esmorecer o entusiasmo do vasto público que acorreu ao Coliseu de Lisboa para testemunhar mais uma passagem de Benjamin Clementine pela capital, a terceira em menos de um ano. A revelação aconteceu em julho de 2015, num palco secundário do Super Bock Super Rock. A consagração chegou escassos meses depois, quando já com estatuto de cabeça de cartaz do Vodafone Mexefest atuou num Coliseu a rebentar pelas costuras. E agora o regresso à mesma sala, novamente bem composta numa noite quente de junho, foi a confirmação dos créditos que o levaram a conquistar o Mercury Prize no ano passado, com o álbum “At Least for Now”.
Porventura a maior curiosidade consistia em verificar se este homem alto e esguio (que continua a apresentar-se de cabelo afro escovado para cima, descalço e com casaco comprido abotoado) saberia fintar a natural dissipação do “fator novidade”, mais ainda quando aquele álbum continua a ser o seu único cartão-de-visita. Arriscamos dizer que o terá conseguido.
Há seis meses enfrentou o Coliseu de Lisboa apenas na companhia do baterista francês Alexis Bossard, mas desta vez aos dois juntou-se pontualmente um quinteto de cordas feminino (com quatro portuguesas) que conferiu maior solenidade a algumas canções. Todos os músicos que o acompanharam foram-se revezando em palco em função do alinhamento escolhido, imprimindo assim versatilidade e dinamismo ao espetáculo.
Benjamin subiu a um palco despojado de efeitos cénicos e sentou-se ao piano para, sozinho e afastado da boca de cena, interpretar os dois primeiros temas. Abriu logo com um inédito, cuja letra deixa antever que continuará a contar histórias da sua vida da mesma forma desabrida. Seguiu-se “I Won’t Complain”, tocada e cantada com um sorriso nos lábios, não estivéssemos perante um ser maior, capaz de sublimar as agruras de um passado por todos conhecido.
Basta estar minimamente atento às suas letras autobiográficas. Como em “Condolence”, que interpretou já acompanhado por Alexis, lembrando-nos que “Out of absolutely nothing/I Benjamin/I was born/So that when I become someone one day /I always remember/I came from nothing”, ao mesmo tempo que enviava condolências ao medo e à insegurança, num claro exorcismo ao bullying de que foi vítima na infância. No meio de uma intensa chuva de palmas, alguém ao nosso lado comentou “Opá, tão bom! Como é possível?”. Ainda íamos na terceira música, mas o público já estava rendido…
E mais rendido ficou após a entrada em cena do tal quinteto de cordas (violoncelo, contrabaixo e três violinos), que ajudou a fazer jus à grandiosidade de temas como “Adios”, “Nemesis” (merecedor da maior ovação da noite) e “London”. A presença dessa secção de cordas poderia ter sido aproveitada para interpretar “Then I Heard a Bachelor’s Cry” mas o tema ficou fora do alinhamento, tal como “Gone”.
A prodigiosa voz de Clementine continua a ser o centro à volta do qual tudo o resto gira. A essa voz, que sozinha consegue encher uma sala, acresce a forma exímia como domina o piano e dele parece conseguir extrair sempre mais uma nota inesperada. A esses reconhecidos talentos o nosso anfitrião juntou uma boa interação com uma plateia que aproveitou quase todas as pausas para o interpelar, demonstrando um afeto por vezes desmedido. Ainda nos pareceu surpreendido com a enorme devoção que lhe é dedicada mas revelou-se um bom conversador. Essa circunstância possibilitou alguns momentos divertidos, por exemplo quando, a propósito do concerto ter coincidido com o Dia da Criança, pediu que lhe traduzissem a palavra children. Perante a incapacidade de perceber a resposta “criança” insistentemente atirada pela plateia, alguém resolveu simplificar as coisas gritando: “puto!”. A risada foi geral.
Depois de ter tocado “Cornerstone” (novamente a solo) e ter desvendado mais uma música nova com um cativante refrão, despediu-se com uma versão de “Voodoo Child”, de Jimi Hendrix. Os riffs de guitarra que tornaram famoso o tema original foram substituídos pelo intenso martelar do seu piano em aceso despique com o ritmo frenético da bateria. Abandonou depois o palco deixando um conselho: let tomorrow be tomorrow. Planamente focado naquele momento único, o Coliseu estremeceu com tal entusiamo que acabou por merecer dois encores.
No primeiro regresso, a mini-orquestra voltar a mostrar serviço em “Winston Churchill’s Boy” e “The People and I”. Antes desta última, já Benjamin tinha oferecido um terceiro tema novo (deixando antever que o segundo álbum já estará na forja) e havia arriscado cantar na língua de Camões, enveredando pelo catálogo de Seu Jorge com um medley de “Tive Razão” e “Burguesinha” - um momento de hilariante improvisação em que, apesar de ter comido a maior parte das palavras, ficou provado que a linguagem da música é mesmo universal.
Após Benjamin ter pedido que a plateia fosse iluminada e ter descido do palco para recolher uma bandeira de Portugal com a qual saiu de cena, houve quem se tenha ido embora. Mas o trovador regressou com essa mesma bandeira colada ao pescoço para tocar “St-Clementine-On-Tea-And-Croissants” e para mais uma versão: “River Man”, de Nick Drake.
Quase duas horas após o início do concerto, o músico inglês permaneceu de pé em frente ao piano e, com postura de maestro, foi repetindo a palavra adiós com diferentes entoações, desafiando o público a entrar no jogo. O cântico repartido que se ouviu nos minutos seguintes foi a expressão perfeita da comunhão entre o público e o seu ídolo.
O que Benjamin Clementine nos deu em palco foi a possibilidade de celebrarmos a sua própria vida. O autor do aclamado “At Least for Now” nasceu com a música na alma e voltou para limpar a nossa alma. Pelo menos por uma noite.
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Organização:Sons em Trânsito
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sexta-feira, 22 novembro 2024