Reportagem Divine Comedy - Lisboa
Veio mesmo dos Céus
Neil Hannon é um génio. Nada mais, nada menos. Tinha-o já provado ao longo de vinte grandiosos anos de carreira e dez belos álbuns, e provou-o agora num espantoso concerto onde sozinho encheu um palco de uma forma como muitas bandas não conseguem. Entertainer magnífico, com o seu sentido de humor irónico e apurado, e um músico espectacular (quem diria que tudo soaria tão perfeito apenas com um piano e uma guitarra?), Hannon deu cerca de hora e meia de um espectáculo que foi por várias vezes divertido, por várias vezes emocional, e por várias vezes tão belo que desarma. Senhores músicos que querem andar por aí a solo em digressões: prestem atenção, porque é assim que se faz.
A noite começou, passava pouco das dez, com uma bela primeira parte de Cathy Davey. Sozinha, sentada com uma guitarra eléctrica, Davey teceu algumas belas canções com uma voz verdadeiramente impressionante, de timbre límpido e lindíssimo. “Peço desculpa, estou um pouco bebeda. Posso gostar disto mais que o normal”, diz após a primeira canção, com um sorriso na cara, recomeçando a tocar após os aplausos e risos que a sua afirmação trouxe. Som calmo e agradável, com uma guitarra bem definida e uma voz que facilmente encanta. Perto do final, tocou uma canção que, como bem me disse um grande amigo, tinha basicamente a mesma linha melódica que a Exit Music (For a Film), dos Radiohead, e pelo meio tocou ainda uma versão calma e suave de Blue Moon (já ninguém se lembra que a versão original, dos The Marcels, era do mais dançável que há). Boas influências, portanto. Minutos bem passados, dados por uma artista que tem potencial e que, com sorte, há-de cá regressar em breve. Aquela voz…
Pouco depois, entra de chapéu, pasta e cachimbo, o mestre de cerimónias da noite: Neil Hannon, mentor do tão importante, conhecido e genial projecto conhecido como Divine Comedy. Muitos são os que dizem, erradamente, “os” Divine Comedy; o projecto musical nunca consistiu em algo mais que canções criadas e arranjadas por Neil Hannon, com os membros a entrar e a sair da banda de forma regular, sendo ele sempre o único pilar e criador dum grupo que, além dele, nunca foi fixo (e que se baseava em tocar apenas canções que este criava). Agora, decidiu ir em digressão sozinho. E o resultado não podia ser melhor.
Senta-se ao piano, retira o cachimbo da boca, tira da pasta alguns papéis que coloca em cima do piano (certamente para enfeitar, já que o concerto nem setlist teve, e o músico não olhou para os papéis uma única vez), e começou com Assume the Perpendicular, bela canção do seu último álbum: Bang Goes the Knighthood, editado este ano. Foi desde logo impressionante a forma como o piano assentava que nem uma luva à canção, com Hannon dominando na perfeição o instrumento. “Tiveram um bom jantar?”, peguntou divertido o músico no final da canção. “O quê? Alguns ainda não jantaram? Oh não… devia ter trazido sandes para todos!”. Foi a primeira gargalhada de uma noite que teria muitas. De seguida, volta a dirigir as atenções para as teclas e, subitamente, a sala volta ao passado com The Pop Singer’s Fear of the Pollen Count, alegre canção do genial álbum Liberation, o segundo do músico e, quem sabe, talvez o seu melhor. E aqui, o público começa verdadeiramente a interiorizar um facto que se veria a verificar ao longo de toda a noite: neste registo mais minimalista, as canções funcionam igualmente bem. Hannon criou arranjos magníficos, e domina na perfeição o seu instrumento. Cada canção ao longo da noite foi interpretada na mais pura da perfeição.
De seguida, mais um excelente momento de humor do entertainer. “Bem, a próxima canção… Primeiro foi a Grécia… Agora é…” e termina olhando para o público. Toda a sala se desmancha a rir, incluindo o próprio Hannon, que rapidamente acrescenta “Não se preocupem, vocês safam-se”, antes de se atirar a The Complete Banker, mais uma canção do novo disco, que fala de forma irónica da crise monetária que actualmente se vive a nível mundial. Curiosamente, as canções do novo disco funcionaram melhor no concerto que em disco, sendo mais visível o seu lado energético e alegre. E as letras, claro, soaram agora ainda mais claras.
Não tardou muito, e vinha o primeiro grandioso momento da noite: The Certainty of Chance. Certamente uma das favoritas do músico para muitos, foi um momento verdadeiramente lindíssimo, com a voz de Hannon a mostrar parecer não ter envelhecido e os seus dotes como pianista a mostrarem todo o seu esplendor. Bom solo de piano no final, com Hannon a meio a dizer “Este solo aborrece-me”, terminando-o de seguida na perfeição, perante os aplausos de uma sala já completamente rendida. E de seguida, veio mais um magnífico momento: Everybody Knows (Except You), mais uma das mais belas canções do génio que ali estava em palco (e um luxo, já que não tem sido uma constante ao longo da digressão). Lindíssima (haverá outra palavra…?), de ficar com os olhos humedecidos perante o que se via e ouvia. E, a partir daqui, o concerto não abrandou: grande momento atrás de grande momento, com um verdadeiro entertainer em palco e um povo rendido ao homem que lhe trouxe vinte anos de tão boa música.
Foi um desfilar perfeito de canções perfeitas interpretadas de forma obviamente perfeita. O alinhamento foi uma representação exemplar da grande carreira de Hannon, repleto das suas melhores canções (falta sempre algumas, mas neste caso poucas foram) que todas elas interpretou de forma magnífica, com alguns pedaços de humor irónico entregues com um carisma como raramente se vê. Veja-se aquele cómico momento quando abandona o piano, se dirige pela primeira vez à guitaraa, e ao lá chegar diz “Esqueci-me do que ia a tocar a seguir”. Fica alguns segundos a pensar com um sorriso na face, e subitamente alguém do público grita “ALFIE!”. “Sim! Era essa! Adoro quando alguém do público grita o nome de uma canção que estou prestes a tocar!”, responde, interpretando de seguida na perfeição mais um triunfante regresso ao passado: Becoming More Like Alfie. Foi a primeira vez que o vimos com a guitarra, e rapidamente se tornou óbvio o quão bem iriam soar as canções neste instrumento (tão bem quanto já antes tinham soado ao piano), dominado na perfeição pelo músico.
Sem momentos mornos, sem canções menores, com Hannon sempre em topo de forma: foi isto o que se viu ao longo de perto de hora e meia. Que se pode dizer com momentos como A Lady of a Certain Age, indescritível por palavras, com o público profundamente envolvido pela triste beleza da canção interpretada de forma tão genial? Ou aquela cover que tocou do clássico I Only Have Eyes For You, cantado e tocado a duas vozes, com Cathy Davey que aqui se juntou ao mestre em palco? Ou Songs of Love, que representa na perfeição muito daquilo que o autor é como escritor e músico? E, claro, aquela interpretação apoteótica e arrepiante de Our Mutual Friend, com o músico no final a usar ao máximo os seus dotes vocais (arrepiante!), enquanto arranca do piano sons trágicos; momento de puro epicismo emocional como muito, muito raramente se vê.
E depois existiram, claro, momentos inesperados, originais e hilariantes. Veja-se, por exemplo, quando o músico afina a guitarra e, perante os inúmeros nomes de canções que voam até si vindos do público, afirma ironicamente “Sim, muito bem, têm um conhecimento impressionante do meu trabalho discográfico. E agora, aqui vai a canção que eu vou mesmo tocar”. Ou, claro, aquele momento simplesmente genial que foi a sua cover de Don’t You Want Me, grande canção dos anos 80 dos The Human League, tocada da forma mais divertida (e instrumentalmente perfeita, diga-se) possível, com o cantor a pedir ao público para o acompanhar naquele Don’t you want me baby? Don’t you want me, oh ohhh. Hilariante a forma como tentou imitar Susan Sulley na parte em que esta canta na música, tornando o seu timbre mais agudo e feminino. Momentos assim, de interacção divertida que mostrou o carisma do músico em todo o seu esplendor, foram frequentes; quem não se riu quando cruzou as pernas, se virou para o público, pôs o cachimbo na boca e disse “Estou cansado, está na hora duma pausa. O que hei-de fazer a seguir…? Ah, pois, tocar uma música, já que parece que estão aqui para isso”? Ou quando obrigou um membro do público a ir ao palco contar uma piada a meio de Can You Stand Upon One Leg?, canção divertida que simplesmente parou na parte em que estava, ficando a tocar a mesma sequência sem avançar até alguém se dignar a ir ao palco contar uma anedota (para os mais curiosos, a piada da noite foi: qual é a diferença entre um táxi e o Real Madrid? Um táxi só leva quatro).
Terminou o corpo principal do concerto com a sempre espantosa Tonight We Fly, interpretada na perfeição ao piano, que em todos humedeceu os olhos e esticou um sorriso. Sai do palco, e quando volta fá-lo para terminar o concerto com mais dois grandiosos momentos (foram tantos!): The Frog Princess (com Hannon a pedir ao público para o ajudar na parte em que se ouve parte do hino francês) e National Express, que terminou o concerto num tom envolvente, alegre e energético. Final magnífico, digno de uma noite que o foi toda ela do início ao fim.
Esteve sozinho em palco, e não precisou de mais ninguém; aliás, assim até teve outra magia. Entertainer genial e músico espantoso, Neil Hannon veio a um Maria Matos esgotado apresentar (pela segunda noite consecutiva) vinte anos de uma carreira simplesmente notável. Entrou em palco, agarrou o público do início ao fim, interpretou um alinhamento simplesmente a roçar a perfeição absoluta de forma igualmente perfeita, e deu um espectáculo como só ele sabe dar. Por vezes hilariante, por vezes comovente, por vezes arrebatadoramente belo, sempre magnífico; Hannon mostrou ser, de facto, uma divindade que caíu dos céus. Numa altura em que parece estar na moda os artistas fazerem digressões a solo, eis aqui provavelmente o melhor dentro desse género (aliás, eis aqui provavelmente um dos melhores. Ponto). Neil Hannon entrou sozinho em palco, ficou sozinho em palco durante hora e meia, e foi assim que deu aquele que foi, pura e simplesmente, um dos concertos do ano que agora se aproxima do fim. Fazer algo assim não é para todos, simplesmente não é.
Agora, que venham mais vinte anos de carreira e, com sorte, um rápido regresso ao nosso terrirório. Nós aqui estaremos, durante essas próximas duas décadas; e com a garantia dada de que, durante todo esse tempo, o concerto desta noite continuará bem vivo na memória.