Reportagem Father John Misty em Lisboa
A noite em que Josh Tilman, aka Father John Misty, veio ao nosso Coliseu dos Recreios encerrar a digressão europeia de apresentação do seu novo disco “Pure Comedy”. A noite da retenção para uma multidão de devotos, ao cabo de 22 salmos proféticos. A noite da tragédia e da comédia humana; da religião e da política; da realidade e do virtual; do mel e do fel…
A pergunta assalta-nos no final das quase duas horas de espetáculo: como é possível que um homem com esta voz, com esta presença em palco e com tantas palavras que nos fazem pensar, tenha estado quatro anos “escondido” atrás da bateria dos Fleet Foxes? A vida tem caminhos misteriosos e para Josh Tilman tudo melhorou a partir do momento em que se reinventou como Father John Misty, corria o ano de 2012. E como cresceu desde então!
Bastaram os primeiros minutos do concerto desta noite para o percebermos: no lugar do cowboy selvagem que irrompeu pelos festivais Vodafone Paredes de Coura (2015) e NOS Alive (2016) surgiu um artista mais contido, com a confiança própria de quem tem um disco novo (“Pure Comedy”, lançado no passado mês de abril) que entrou diretamente para o Top 10 da tabela Billboard 200, apesar de estar repleto de complexas interrogações sobre o mundo atual. A ênfase está agora mais nas palavras e menos no show-off.
Father John Misty mostrou-se tão seguro de si que nem hesitou em abrir o concerto com as quatro primeiras músicas do novo álbum, mais despido e composto em torno das cordas e do piano. E foi precisamente ao som do piano de Jon Titterington e da voz de Tilman que o concerto começou, com a música que dá nome ao novo disco desenrolando-se em suave crescendo até chegar a um refrão que foi cantado em uníssono e nos trouxe à memória “Honesty”, tema gravado por Billy Joel em 1978. A provocante “Total Entertainment Forever” veio logo a seguir com referências a uma fantasia virtual com a cantora Taylor Swift mas sem os instrumentos de sopro utilizados em estúdio. A secção de cordas e sopros que o acompanhou em outros palcos desta digressão não esteve presente mas essa ausência acabou por ser colmatada pelos seis músicos que acompanharam o líder em palco e que tiraram partido da excelente acústica do Coliseu.
Foi um início que impressionou também a nível visual, com uma belíssima iluminação (muitas vezes em contraluz) e com a projeção animada dos mostrengos criados por Ed Steed, cartoonista do New York Times e responsável pela extraordinária capa do novo disco. Ou ainda com a imagem de um enorme globo terrestre na majestosa “Things It Would Have Been Helpful to Know Before the Revolution”, representando o “bright blue marble orbited by trash” de que nos fala uma canção com entoação à Elton John. Belo início, portanto, apenas manchado pelo esquecimento de um dos versos de “Ballad of the Dying Man”, prontamente perdoado por alguém que gritou um sincero “I love you, Father!” assim que a música terminou.
Aos 36 anos, “the oldest man in folk rock” - autodenominação adotada num dos temas do seu novo disco - não perdeu o carisma. A barba está mais aparada e o cabelo mais curto. A indumentária também não foi descurada: casaco escuro e camisa parcialmente desabotoada, skinny jeans e botas a rigor foram a receita certa para um coro de suspiros que atravessou a plateia heterogénea que encheu o Coliseu dos Recreios. Se o raio do barbudo conseguiu provocar um fervoroso clamor com um simples fitar nos olhos, uma mão a descer sensualmente pelo corpo ou um cruzar de pernas teatral, imagine-se a reação do público assim que atirou a guitarra acústica para as mãos do roadie de serviço, prostrando-se de joelhos a meio da tormenta de ciúmes confessada em “Nothing Good Happens at the Goddamn Thirsty Crow”. Ou então quando um Tilman narcisista surgiu em dose tripla (!) num mini filme que serviu para contar a história do threesome que o inspirou a compor “The Night Josh Tillman Came to Our Apt.”.
Como se esperava, o alinhamento do concerto privilegiou os temas do aclamado “I Love You, Honeybear” (2015), álbum maior que o catapultou para a fama mundial. “Chateau Lobby #4” continua a ser uma comovente declaração de amor à mulher da sua vida, mesmo sem a presença das trompetes mariachi usadas na versão original. “When You’re Smiling and Astride Me” e “I Love You, Honeybear” provaram que Father John Misty usa os “o-ohs” e “u-uhs” melhor do que ninguém. “Strange Encounter” foi acompanhada com palmas do público e ganhou um ritmo mais acelerado face à versão original. “True Affection” surgiu na forma de um coração na tela gigante para denunciar os perigos da realidade virtual, com uma voz e eletrónicas muito próximas de Owen Pallett e uma percussão na linha de “Claudia Lewis” dos franceses M83. E “Bored in the U.S.A.” (canção cujo título resulta de um evidente jogo de palavras com “Born in the U.S.A.” de Springsteen) foi a canção mais ativista da noite: uma violenta mistura de desilusão e desespero, com recados diretos aos representantes da nação americana (“They gave me a useless education/And a subprime loan/On a craftsman home; Save me, President Jesus”).
Os momentos de revisitação ao álbum de estreia (“Fear Fun”; 2012) foram os de menor intensidade. Mas se o ritmo do espetáculo foi quebrado por canções como "Only Son of a Ladiesman" e "This Is Sally Hatchet", a reta final voltou a animar com o registo country de “I'm Writing a Novel” (ora descubram lá as semelhanças com “The Battle of John and Yoko” dos Beatles) e o rock denso de “Hollywood Forever Cemetery Sings”, único momento em que Misty trocou a guitarra acústica pela elétrica. Foi também por essa altura que agradeceu a Weyes Blood, projeto folk da californiana Natalie Mering (com um timbre de voz semelhante à irlandesa Enya) - trio que proporcionou uma primeira parte muito agradável a quem chegou cedo ao Coliseu.
Foi no regresso para o exigido encore que a faceta de entertainer de Father John Misty veio à tona. Após ter soltado um “This is incredible, what the hell!”, desceu até às grades para um momento de pura comédia que ele próprio designou de “Beard Porn”. Leu então em voz alta alguns cartazes com mensagens alusivas à sua pilosidade facial (a mais original até passou despercebida: “Let me touch your beard before Trump and Kim Jong-un blow us up”) e atirou um “Vocês nem estão aqui pela música, são um bando de fetichistas por barba!”, num tom tão sarcástico como estudado. Afinal, não foi ele que um dia confessou preferir ser autenticamente falso do que ser falsamente autêntico?
O encore abriu com a dançável “Real Love Baby”, música lançada no ano passado através do Soundcloud e cuja letra assumidamente pop destoa do seu restante repertório, tendo na realidade sido originalmente escrita para Lady Gaga. O universo pop, diga-se, não lhe é nada estranho, atendendo a que também escreveu para Beyoncé e participou num vídeo de Lana Del Rey. Na viagem proporcionada por “So I'm Growing Old on Magic Mountain” subimos e descemos a montanha mágica: a música começou de forma lenta, a certa altura ganhou um tom apocalíptico e terminou de forma celestial. Depois da bonança veio a tempestade: as explosivas “Holy Shit” e “The Ideal Husband” fecharam o serão ao som de guitarras distorcidas e de uma bateria pesada, com um Misty verdadeiramente diabólico na pele de Jim Morrison.
É sabido: para os seus fiéis Father John Misty é Deus na terra. Pegando na metáfora, bem se pode dizer que a missa de quase duas horas que este Pastor do folk rock deu em Lisboa terá agradado tanto a antigos como a novos crentes. Palavra do Senhor.
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Organização:Everything is New
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terça-feira, 02 janeiro 2018