Reportagem God is An Astronaut em Lisboa
Deus é um astronauta, e esteve em palco
O post-rock é, hoje em dia, um daqueles termos usados de forma demasiado comum, “cabe tudo dentro do mesmo saco”, aplicado a praticamente todas as bandas que façam música sem vocalista e com guitarras. É cada vez mais difícil definir exactamente o que significa, que bandas caem nas suas características, e não são poucos os grupos que detestam ver-se associadas a ele; os God is an Astronaut incluídos.
E se é verdade que hoje em dia se torna complicado definir exactamente o que o género abrange, não é tão complicado encontrar dentro desse saco a que chamamos de estilo as bandas mais populares e que um maior cultro atraem. Os God is an Astronaut, não sendo uns Mogwai ou uns Godspeed You! Black Emperor, estariam certamente no top “Bandas mais populares do post-rock”, caso o quiséssemos fazer. Com um culto fortíssimo no nosso país, por onde já várias vezes passaram (a última, em Paredes de Coura, no ano passado), a banda dos irmãos Neil e Torsten Kinsella tem já dez anos de carreira atrás das costas e [agora] seis discos na bagagem, com um deles, All is Violent, All is Bright, a ser frequente e merecidamente apelidado de obra-prima. Origins, o último que lançaram e cuja digressão os trouxe de volta ao país que sempre os recebeu de braços abertos, mostra o grupo com um som mais electrónico e experimental comparado ao que antes ouvimos, com as vozes, recheadas de vocoder, mais fortes que nunca, e as guitarras com tantos pedais em cima que às tantas se torna difícil perceber se o que ouvimos é um instrumento de cordas ou um sintetizador. Origins agradou a muitos e desagradou a tantos outros, mas não foi por isso que a sala TMN ao Vivo deixou de se mostrar bem composta para um concerto que tinha o potencial para ser uma de duas coisas: ou um dos concertos do ano, ou uma desilusão tremenda.
No final, a balança acabou (felizmente) por cair para a primeira hipótese, com a noite a mostrar não só que a banda está melhor que nunca (“Tinha-os visto há cinco anos atrás e agora têm muito mais power!”, disseram-me no final), mas também que o culto que têm por cá sempre foi e continua a ser mais que merecido.
Mas voltemos atrás, antes de mergulharmos na noite triunfante dos manos Kinsella e companhia. Eram oito e meia, meia-hora antes da hora marcada dos concertos, quando a sala estava ainda nem a metade, fazendo antever o pior. Os poucos presentes, muitos deles com t-shirts da banda, muitos deles discutindo em voz alta que músicas mais queriam ouvir, com a sala a encher lenta mas consistentemente, já bastante cheia quando o relógio marcava as nove e os Quelle Dead Gazelle, banda de abertura, deveriam estar a entrar em palco. Entraram quinze minutos depois, com uma plateia algo fria e largamente desconhecedora à sua espera.
A dupla portuguesa, constituída por bateria e guitarra, lançou este ano o seu belíssimo primeiro EP, de título homónimo, onde uma guitarra omnipresente e poderosíssima se alia a uma bateria igualmente imponente para criar canções tão únicas quanto originais, onde se ouve um pouco de tudo desde ritmos mais orientais a guitarradas que lembram metal. É um EP que muito tem dado que falar, e merece qualquer elogio que receba: os Quelle Dead Gazelle transpiram originalidade e energia, e desde cedo se começaram a afirmar no panorama musical nacional mais recente, com a vitória no Termómetro a colocá-los um pouco na boca de toda a gente (ou, pelo menos, dos mais atentos... o público que os esperava nesta noite, infelizmente, mal sabia quem eram).
O EP é óptimo, mas ao vivo a dupla acaba por deixar um travo a desilusão. Miguel Abelaira, baterista, é absolutamente espectacular e toca com uma fluidez que colocaria muitos profissionais a um canto, mostrando um talento nato que nos coloca o queixo no chão; Pedro Ferreira, guitarrista, acaba por ser quem mais desilude, mostrando-se extremamente dependente de overdubs ao longo de todo o (curto) concerto. Seria muito provavelmente impossível concretizar ao vivo de forma plena o que fazem em disco com apenas uma guitarra, mas a solução não está também num uso tão óbvio daquilo a que já alguns chamaram de “o lip-sync das guitarras”, dando por várias vezes a ideia de que aquilo que estamos a ouvir, tão complexo e perfeito, não é exactamente aquilo que Pedro está a tocar. Os overdubs de guitarra minam o concerto, que não deixa de ser energético e competente, ainda que por vezes cansativo até mesmo na própria estrutura das canções, que ora se alongam demasiado ora simplesmente deambulam, parecendo duas ou três músicas enfiadas numa só. A isto se junte um público no geral apático e desconhecedor, e temos meia-hora de música que não convence particularmente.
"Madrasta", em particular, é das melhores músicas saídas do EP; o problema jaz na forma como é concretizado ao vivo. Um segundo guitarrista seria talvez a solução mais clara para o uso tão descarado de overdubs (solução essa que tantas outras bandas já usam, exactamente para evitar usar aquilo em que Pedro se mostrou tão dependente), e certamente teria dado ao concerto uma dinâmica mais energética e, acima de tudo, a sensação de que efectivamente tínhamos ali alguém a tocar tudo em live. Tal como estão agora, no entanto, não se mostram plenamente aptos de defender em palco as excelentes músicas que já fizeram. O tempo, com sorte, mudará isso. Nesta noite, no entanto, perante um público que às tantas se mostrou fatigado e farto, dificilmente terão feito muitos fãs.
Os God is an Astronaut, pelo contrário, tinham à sua espera um público que roía as unhas e contava os minutos até à sua entrada em palco. O grupo irlandês, que recentemente passou a um quinteto ao vivo com a adição de um teclista/guitarrista (Jamie Dean, o rockstar carismático da banda que fez maravilhas em Origins e se mostrou o mais extrovertido dum grupo todo ele muito comunicador), começou o concerto com "Weightless", numa descarga absolutamente monumental de guitarras, guitarras, e mais guitarras, dando logo a confirmar aquilo pelo qual todos rezavam: Origins pode soar um pouco diferente aos fãs mais acérrimos, mas ao vivo os God is an Astronaut mostram que a sua religião ainda são essencialmente as seis cordas, e que o poder das músicas, sejam elas novas ou antigas, em concerto, é mais que impressionante. E, ao longo de dezassete músicas, foi isso que se viu: uma enorme e arrepiante muralha de som, ora de levar uma pequena lágrima ao canto do olho "(All is Violent, All is Bright", a terceira música do set, teria valido por si só o preço do bilhete, com o seu clímax aumentado, expandido, e tão belo quanto arrepiante), ora de fazer headbanging até ao fim do mundo ("Exit Dream", canção do último disco, foi exemplo disso, tal como a genial "Calistoga").
Sem momentos menores, mais parados ou mais fracos, foi fenomenal ver a forma como as canções novas encaixaram tão bem com as mais antigas, num alinhamento para agradar a qualquer fã do grupo, com Origins tocado quase na sua íntegra mas também com muitas, muitas pérolas do passado, repescadas e tocadas pela banda como se fosse a primeira vez. "From Dust to the Beyond" e "Exit Dream" mostraram o melhor do passado e do presente, tal como Fragile (lindíssima!) ou a grande (e tão catchy) "Spiral Code". Origins pode soar mais diferente em disco, mais electrónico (apesar de ser quase todo composto por guitarras... simplesmente são guitarras com muitos efeitos), mas ao vivo revela-se energético, orgânico, e absolutamente explosivo. Foi espectacular ver um público tão entregue tanto às canções novas como às antigas, com dezenas em sintonia de headbanging, com a banda em palco a depositar em cada música tudo o que tinham na alma. Comunicadores, energéticos, e até nostálgicos (Torsten, guitarrista e mentor principal da banda, relembrou com um sorriso na cara a digressão que fizeram em conjunto com os Linda Martini por cá, há sete anos atrás), os God is an Astronaut foram contra a ideia de que bandas post-rock ou instrumentais, no geral, mal interagem com o público (Mogwai, Mono, Tides From Nebula e Godspeed You! Black Emperor são exemplos), revelando-se excelentes anfitriões.
Jamie foi ao público e correu por todo o palco,Torsten fez um headbanging constante sempre com os olhos no público, Niels revelou-se em palco um baixista tão genial quanto feliz por cá estar, e os restantes mostraram-se completamente entregues à criação daquele jogo de sons fascinante (o vocoder nunca nos soou tão bem), e que normalmente culminava num clímax que, se já a ouvir em casa impressiona, ao vivo tem o quadrúpulo do poder. “É bom ver uma banda deste género que parece ralar-se com o público”, disse-me alguém já ao final da noite. É, de facto.
O som estava surpreendentemente bom, com cada pequeno pormenor – e eles têm tantos, em cada música – facilmente perceptível, algo espectacular tendo em conta que a TMN ao Vivo pode por vezes desiludir nesse aspecto; é pena que já não usem as projecções de vídeo que antes usavam, mas quem precisa disso com músicas destas? O alinhamento revelou-se inteligente, com cada música do passado a mostrar-se como uma daquelas que os fãs mais querem ouvir, com a banda a mostrar-se bem ciente de que All is Violent, All is Bright é, efectivamente, o seu disco mais adorado. Desde "Fireflies and Empty Skies" (in-crí-vel, a encerrar o corpo principal do espectáculo) a "Suicide by Star" (repito: in-crí-vel), cada diamante do passado foi tocado com uma alma incrível, em versões fiéis mas ainda mais potentes, nunca perdendo no entanto nenhuma da sensibilidade ou beleza que têm em disco (aquele teclado na "Forever Los", ou toda a "The Last March", que contou com uma bonita e emotiva introdução de Torsten). Se faltou alguma? Bem, terão faltado sempre. Cada um tem as suas favoritas, e nunca há tempo para tudo. Mas o que vimos em palco foram uns God is an Astronaut que abraçam tanto o futuro como o passado, exemplares na forma como tocam com tanta alma tanto as músicas mais recentes como as que já tocam há uma década. O encore, onde tanto eles quanto o público (não via tanta gente com um sorriso tão grande na cara há muito tempo) deram o tudo por tudo, começou com a recente "Red Moon Lagoon" (grande, grande) e terminou com a já citada "Suicide by Star" e a apoteótica, tão-energética-e-espectacular-que-parecia-o-fim-do-mundo "Route 666", que pôs fim a um concerto a roçar a perfeição (só não dizemos que chegou lá porque é, supostamente, inantigível).
Tal como se disse perto do início do texto, este concerto dos God is an Astronaut podia ter sido uma de duas coisas: uma desilusão, ou um dos melhores do ano. Foi, felizmente para todos os presentes que saíram da sala com um sorriso gigante na cara, uma noite triunfante para uma banda que sempre foi recebida com carinho, e que depois desta noite continuará a ser.
Os God is an Astronaut que vimos são uma máquina musical por excelência, que tanto dão guitarradas incríveis como momentos de puro intimismo, transformando cada canção num tiro certeiro, num espectáculo de cerca de hora e meia. Noventa minutos sem um único momento morno, com um público rendido do início ao fim, sem quaisquer tipo de falhas (espectacular a forma como cada pequeno pormenor que se ouve em disco está presente em palco), com as músicas antigas a serem tudo aquilo que se esperava e as novas a impressionarem pelo que foram.
É cliché hoje em dia dizer dum concerto que foi uma “viagem” ou uma “experiência”... mas o que os God is an Astronaut deram ao público que os foi ver foi isso mesmo. Uma viagem, tão emotiva quanto energética, com um quinteto poderosíssimo, em perfeita sintonia, tão entregue quanto feliz por ali estar. Foi, portanto, absolutamente memorável.
Resta apenas esperar que continuem a crescer e, acima de tudo, que não demorem a regressar. Não sabemos se são post-rock; mas sabemos, no entanto, que tanto ao vivo quanto em disco são algo absolutamente únicos e arrebatadores. E também não sabemos se Deus é mesmo um astronauta mas, quer seja quer não, a noite foi mesmo qualquer coisa de outro mundo.
-
sábado, 20 dezembro 2014