Reportagem Kurt Vile em Lisboa
O cantautor multi-instrumentista, Kurt Vile encerrou a sua digressão europeia em Lisboa, onde finalmente houve oportunidade de ver o norte-americano atuar em sala, depois de duas passagens pelo Festival de Paredes de Coura. O Armazém F encheu para um concerto íntimo de hora e meia, com quase uma quinzena de canções que alternaram entre o rock e o folk, o elétrico e o acústico.
Vivemos tempos conturbados e as recentes feridas de Paris ainda nos atormentam a mente. Há um carro de patrulha nas imediações do Armazém F e, dentro da sala, notamos a presença pouco habitual da PSP. À entrada somos também informados que, ao contrário do habitual, ninguém poderá permanecer na escadaria por motivos de segurança. Mas, se dúvidas houvesse, a fila que rapidamente engrossa lá fora é a derradeira prova de que o medo foi vencido e que afinal estamos todos ali por um simples motivo: celebrar a música.
Perante o cancelamento dos Waxahatchee (devido a problemas de saúde de Katie Crutchfield), a primeira parte do concerto esteve a cargo dos incógnitos Lushes. Com dois discos na bagagem, o duo de Brooklyn conquistou o interesse da plateia através de uma sonoridade árida e retorcida, num misto de punk e post-rock baseado em frequentes distorções de guitarra e numa bateria com cadência pesada, a fazer lembrar os Battles.
Já passava das dez e meia quando Wrote for Luck, dos Happy Mondays, precedeu a entrada em palco de Kurt Vile, acompanhado da sua banda… e de uma garrafa de vinho tinto. Quiçá em jeito de festa de encerramento da sua digressão europeia, o ex-The War on Drugs apresentou-se claramente “tocado” e isso limitou a sua voz que, como se sabe, está longe de ser o seu principal trunfo. E por falar em trunfos, destaque-se a enorme versatilidade da sua banda, The Violators, com Jesse Trbovich e Rob Laakso a revezarem-se constantemente na guitarra elétrica e no baixo, enquanto apenas Kyle Spence se manteve fiel à sua bateria.
Metade do alinhamento do concerto baseou-se em “b’lieve i’m goin down”, o seu sexto longa duração, lançado há escassos dois meses e de cuja produção se encarregou maioritariamente o próprio Kurt Vile. As primeiras cinco músicas da noite foram extraídas desse último trabalho e nelas encontramos letras introspetivas e uma diversidade de instrumentos: o piano eletrónico assumiu o protagonismo logo na abertura com Dust Bunnies, o banjo impôs-se em I’m an Outlaw, a guitarra clássica acompanhou a tristemente bela That’s Life, tho (almost hate to say) e a guitarra elétrica justificou o porquê de Pretty Pimpin ser provavelmente a canção mais “orelhuda” do norte-americano, embora prejudicada por um arranque mais demorado para afinação e também por alguns problemas de som.
Aos 35 anos, Kurt Vile é um pai de família com ar de miúdo introvertido, mais preocupado em afinar as infindas guitarras que lhe passaram pelas mãos no final de cada canção e em focar a sua atenção nos inúmeros pedais colocados à sua frente. Escondido por detrás da sua farta cabeleira, ao estilo grunge, vimo-lo várias vezes a levantar um dos pés de forma pouco ortodoxa enquanto tocava guitarra e arrancava alguns sorrisos da plateia. Quando ficou de t-shirt, prontamente alguém da plateia gritou “What’s up, Kooks”, repetindo por duas vezes a mensagem que o indie-rocker trazia estampada em letras garrafais. Mas Vile nem sequer nessa ocasião resolveu pegar na deixa…
Após Wheelhouse - a canção que melhor parece refletir o cenário noturno do deserto californiano, onde gravou grande parte do seu último trabalho - Vile ficou sozinho em palco com a sua guitarra clássica para tocar Dead Alive e Stand Inside. E, curiosamente, esse momento acústico foi dos que melhor funcionou, tendo o seu delicado dedilhar sido absorvido em profundo silêncio por todos os presentes, muitos deles de olhos cerrados. Como se estivessem a ouvi-lo tocar no sofá da sua casa.
Pouco depois do regresso da banda ao palco chegaria o momento da noite: Wakin on a Pretty Day, faixa de abertura do seu penúltimo álbum, foi um verdadeiro hino à procrastinação, com voz propositadamente arrastada, percussão certeira, longos e lentos solos de guitarra e muitos “yeah, yeah”. Foram dez minutos perfeitos que granjearam a ovação mais entusiástica da noite.
A noite prosseguiu em tom acústico, com as bonitas melodias Jesus Fever e Wild Imagination, a última das quais parece decalcar a melancolia dos Velvet Underground. E em cima da meia-noite, a despedida fez-se a bordo do frenético Freak Train, uma colheita de 2009. Com os decibéis no máximo, Kurt Vile vestiu a pele de Bruce Springsteen, gritando vigorosamente “WOO”, ao mesmo tempo que Spence não concedeu um segundo de descanso à sua bateria. Nos instantes finais da música, Trbovich ganhou protagonismo à custa de uma desvairada linha de saxofone tocada a plenos pulmões. Kurt poisou a sua guitarra elétrica no chão e a banda abandonou o palco, deixando o som da guitarra a reverberar em loop.
Para o inevitável encore, Vile escolheu duas pérolas de “Smoke Ring For My Halo”, álbum que o tornou conhecido em 2011. Primeiro rasgando guitarras com Puppet to the Man, para depois nos embalar com Baby’s Arms, na qual o artista solitário confessaria “I would never, ever, ever be alone, 'cause it's all in my baby's hands”. Perante uma chuva de aplausos, apercebemo-nos de quão enganador pode ser o título do seu trabalho mais recente (“b’lieve i’m goin down”).
Kurt Vile pode não se reconhecer ao espelho, mas noites como a da passada terça-feira provam que a carreira do “miúdo” de Filadélfia vai no sentido ascendente.
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quinta-feira, 26 novembro 2015