Reportagem Mark Lanegan em Lisboa
A "vulture" do grunge mal amado pousou, mais uma vez, em Portugal para voltar a queimar passados e fazer sangrar memórias perante uma plateia de seguidores silenciosos e contempladores.
Há poucos espaços como este... e poucos artistas que o consigam ensombrar como este. Na noite da passada segunda-feira, o vulto de Mark Lanegan dançou pelas paredes de um enegrecido Cinema São Jorge, em modo espaço de oração ao caos, despido de luz para o receber. A atmosfera envolvente e intimista do São Jorge fecundou uma noite de veneração musical, diante de um público prostrado aos encantos da voz do norte-americano, que escorregava como whiskey e matava como o fado.
A noite, feita de baixo, pura voz e mestria de guitarra (sem percursão, para não estragar o momento de recolha e melancolia) começa ao som de "One Way Street", a dar o mote para a pose do ex-vocalista dos Screaming Trees e a explicar aos menos instruídos o que se iria passar na próxima hora e meia.
É que Lanegan é um daquelas raros artistas que consegue, distante e quase em pose de profeta negro, abrir a alma e vazar toda a solidão e negrura que nela habita, partilhando o mais íntimo dos pensamentos com a audiência... sem nunca, no entanto, lhes permitir proximidade. Exemplos? A dor lancinante de "Deepest Shade", o apelo à ilusão do amor em "You Only Live Twice" e a declaração mal escondida de "I'll Take Care of You" são apenas alguns, de uma noite pejada de acordes, rimas e melodias, onde o espaço para respirar era pouco e aplaudir era quase quebrar o sonho, era quase sacrilégio.
Para quem não sabe, são isto os blues. Para quem não sabe, isto é, também, grunge. Do puro. De Seattle, sem peneiras e sem manias. E a mistura nunca foi tão deliciosa.
A plateia do São Jorge foi disso exemplo nesta noite de impecáveis sonetos à dor, que atingiu a sua primeira (merecida) apoteose em "The Gravedigger's Song". Apesar de Lanegan estar longe de ser um estranho de palcos portugueses, não se ouvia um flash, não se vislumbrava uma tosse tímida e ninguém se mexia da cadeira, a não ser nos raros momentos em que a guitarra não aguentava os blues e se escapulia para o rock, em euforia pouco contida, mas efémera.
Em ambos os casos, a sala era inundada somente de som, impecavelmente trabalhado pelos artistas que acompanharam Lanegan nesta tournée, e que sabiam que nenhum acorde mais ao lado seria perdoado no silêncio sepulcral que se vivia na sala. Afinal de contas, de um Deus exige-se sempre a perfeição... e há poucas noites mais lancinantes e mais perfeitas do que esta.
-
Organização:Everything is New
-
sexta-feira, 22 novembro 2024