Reportagem Massive Attack em Lisboa
Os Massive Attack celebraram 21 anos do seu álbum mais popular, perante uma Praça de Touros do Campo Pequeno a rebentar pelas costuras. Mezzanine XX1 foi um espetáculo audiovisual inquietante, de uma banda que nos convidou a refletir sobre o nosso percurso coletivo nas últimas duas décadas. O alinhamento cobriu na íntegra o disco lançado em 1998, mas também incluiu versões de canções dos Velvet Underground, The Cure, Bauhaus, Pete Seeger, Ultravox e Avicii. Elizabeth Fraser e Horace Andy foram convidados de luxo.
É bom começar por lembrar que o disco agora homenageado – o terceiro de um total de apenas cinco editados pelos Massive Attack no formato longa-duração - já tinha servido de pretexto para a uma passagem por Lisboa em finais de 1998, num concerto que marcou a inauguração do Pavilhão Atlântico, na fase pós-Expo98. Naquela altura, esse novo trabalho representou uma mudança de direção musical, uma vontade de desbravar de novos territórios e de ir além da matriz dub/hip-hop que tinha caracterizado os álbuns anteriores. A concretização dessa intenção viria a implicar uma rutura no próprio seio da banda: após a digressão que se seguiu ao lançamento do álbum, o trio de Bristol passou a duo, com o abandono de Andy Vowles (aka Mushroom), insatisfeito com a aproximação aos ambientes intensos do pós-punk, através da introdução de guitarras.
Vinte anos depois, eis-nos novamente reunidos em torno de “Mezzanine”, para uma releitura crítica dessa obra-prima. Num cenário austero, Robert Del Naja (aka 3D) e Grant Marshall (aka Daddy G) comandaram as máquinas, acompanhados por uma artilharia pesada, onde quase tudo surgiu em dose dupla: dois bateristas (estrategicamente colocados em cada uma das extremidades do palco), dois guitarristas, um baixista e um teclista. Consequência prática: uma tremenda parede de som (complementada por uma autêntica parede de luz) que em momentos cirúrgicos foi ferindo os nossos sentidos, ainda que as vozes dos diferentes intérpretes nem sempre tenham sido percetíveis.
Esteve longe de ser um concerto convencional de celebração, desde logo porque os temas não foram tocados pela mesma ordem. Num contexto de harmonia entre imagem e mensagem, assistimos a uma performance crua e quase teatral do coletivo de Bristol, sem qualquer diálogo com o público. As únicas palavras foram mesmo as projetadas no ecrã ao fundo do palco, conjuntamente com imagens de arquivo do realizador e documentarista Adam Curtis. Foi como se tivéssemos carregado no botão do histórico e sido confrontados com todos os vícios da nossa sociedade. O culto da fama (Britney Spears com um ar desesperado, cercada por paparazzi), da ganância financeira (“Goldman Sachs: apostou na queda e depois provocou-a”), do totalitarismo (Saddam Hussein recebido por crianças em clima de festa), da política sem escrúpulos (várias imagens de Trump recebidas com uma vaia monumental), dos algoritmos que nos “simplificam” o quotidiano e dos “likes” que nos deixam subjugados às redes sociais.
A primeira surpresa da noite surgiu ainda antes da banda ter pisado o palco. Na aparelhagem sonora começamos por escutar canções do universo pop, desde Britney Spears (“Baby One More Time”) até Madonna (“Frozen”), passando pelos Aerosmith (“I Don’t Want to Miss a Thing”) e por Robbie Williams (“Angels”). Mas aquilo que à partida parecia uma seleção musical de gosto duvidoso, mais não foi do que uma forma muito irónica de recuarmos a 1998 – o ano da graça de “Mezzanine”.
A abertura do concerto trouxe uma nova surpresa, já que a primeira música que tocaram nem sequer pertence ao seu catálogo. A versão de “I Found a Reason”, original dos The Velvet Underground, serviu de antecâmara a “Risingson” e foi uma forma de contextualizar o primeiro single de “Mezzanine”, que inclui excertos daquela canção. A intenção repetiu-se imediatamente a seguir, quando “10:15 Saturday Night”, dos The Cure, antecedeu a chegada de “Man Next Door”. E, já na reta final, “Inertia Creeps” foi colada a uma versão de “Rockwrok”, tema dos Ultravox que samplaram quando compuseram o quarto e último single de “Mezzanine”.
É apropriado dizer que, no primeiro de dois concertos esgotados no Campo Pequeno, não celebramos apenas a música dos Massive Attack: entramos no laboratório deles e tivemos direito a uma visita guiada às principais influências musicais que estiveram na génese do seu terceiro álbum, todas elas ancoradas na década de 70. E se a maioria dessas canções está presente no disco na forma de samples, uma outra (“Bela Lugosi’s Dead”) surgiu no alinhamento em jeito de tributo aos Bauhaus, a banda que 3D viu ao vivo em Bristol quando era adolescente e que mais tarde o levaria a fundar os Massive Attack. O fantasma do DJ sueco Avicii, que se suicidou aos 28 anos, também pairou no Campo Pequeno através de uma curta e inusitada versão de “Levels”.
Momentos antes, o tema instrumental “Exchange” já tinha servido de interlúdio, elegantemente pontuado pelo som de um contrabaixo, e “Dissolved Girl” tinha prendido todos os olhares ao ecrã gigante, através de uma seleção de imagens do YouTube, nas quais vimos alguns fãs a interpretar a música que também fez parte da banda sonora do filme Matrix e que terminou com uma explosão de guitarras. Numa dessas imagens, viu-se uma fã a cantar sozinha no seu quarto, com os lábios em perfeita sintonia com a voz pré-gravada da cantora Sarah Jay Hawley. Porque hoje em dia somos todos editores da realidade...
Para a presente digressão os Massive Attack trouxeram também dois ilustres músicos que participaram nas gravações de “Mezzanine”. Na véspera de completar 68 anos, Horace Andy trouxe o perfume do reggae jamaicano. Acompanhado por uma percussão em dose dupla, começou por interpretar “Man Next Door” e mais tarde regressaria para dar voz ao poderoso tema que abre o disco “Mezzanine” (“Angel”) e a uma canção sua (“See a Man’s Face”). A escocesa Elizabeth Fraser interrompeu um longo período de ausência (rezam as crónicas que já não tocava ao vivo desde 2012) para cantar quatro temas.
Aos 55 anos, a antiga vocalista dos Cocteau Twins demonstrou estar em boa forma, provando que o epíteto de “voz de Deus” continua a assentar-lhe na perfeição. A sua voz requintada arrancou os aplausos mais calorosos da noite, seja por ocasião da etérea “Black Milk”, da incrível versão de “Where Have All the Flowers Gone” (o hino folk antiguerra que Pete Seeger compôs em 1961 surgiu completamente transfigurado e ganhou uma tristeza consentânea com imagens chocantes de morte e destruição que foram projetadas em simultâneo), seja ainda na eternamente comovente “Teardrop” (com um mar de telemóveis emergidos da bruma) ou ainda em “Group Four”, tema que Fraser interpretou em dueto com 3D e que serviu para encerrar o concerto.
Foram noventa minutos em que os ambientes nebulosos de “Mezzanine” - o disco que afinal veio do futuro - serviram de pretexto para um ataque massivo à consciência humana. Foi em certa medida uma anti celebração: não houve um “olá”, não houve um “adeus”; nem sequer o costumeiro encore, ainda que a ovação final tenha sido absolutamente estrondosa. Ficamos ali entregues a nós próprios, confrontados com um derradeiro desafio estampado no ecrâ: “Estamos presos numa espiral sem fim, está na hora de deixarmos os fantasmas para trás e começarmos a construir o futuro”. Vamos a isso?
-
quarta-feira, 20 fevereiro 2019