Reportagem Ólafur Arnalds em Lisboa
Ólafur Arnalds regressou a Lisboa para apresentar o seu novo álbum re:member, que tocou quase na íntegra, apesar de ter sido atraiçoado pela tecnologia: o software que lhe permite controlar remotamente dois pianos semi-generativos só funcionou após várias tentativas. Muito perto da lotação esgotada, o Coliseu dos Recreios flutuou em câmara lenta pelas suas suaves paisagens sonoras, entre o clássico e o eletrónico.
“Less is more” – apostamos que esta é uma das máximas adotadas por Ólafur Arnalds, cuja sonoridade minimalista contrasta com as fórmulas instantâneas tantas vezes utilizadas na indústria musical. Apesar da notoriedade que tem vindo granjear, sobretudo a partir do momento em que venceu um prémio BAFTA, Ólafur mantém a timidez, simpatia e simplicidade que já lhe conhecíamos. Vestido de forma informal (sem sapatos, mas com umas meias coloridas), desdobrou-se habilmente entre pianos, sintetizadores e restante maquinaria que se constituiu como elemento central do concerto.
A presença de um quarteto de cordas (violinos, viola de arco e violoncelo) e o apoio pontual de um percussionista acrescentou requinte ao espetáculo. A experiência sensorial também passou por um jogo de luzes que alternou entre a escuridão e a claridade, a intimidade e a intensidade, em perfeita sintonia com os ambientes etéreos da sua música libertadora.
Ólafur subiu ao palco sozinho e dirigiu-se ao piano de cauda para tocar “Árbakkinn”, tema que também abre o álbum “Island Songs” (2016), tendo o quarteto de cordas entrado apenas a meio da canção. Logo ali ficou patente a forma sedutora e hipnótica como a sua música se desenrola: camada sobre camada, numa cama de teclados suaves, na qual se vão deitando sucessivos elementos orquestrais, que começam de forma frágil e que depois ganham urgência, acabando por refrear paulatinamente e desaparecer como um murmúrio suspenso.
O alinhamento do concerto centrou-se em “re:member”, o seu quarto álbum a solo, editado no ano passado. O tema “brot” serviu de pretexto para Ólafur quebrar o gelo, convidando o público a entoar em uníssono um som arrastado, que depois gravou e transformou num registo celestial, à semelhança do que já tínhamos testemunhado quando atuou há cinco anos no auditório do Centro Cultural de Belém (CCB). Pouco depois, “Only The Winds” – único tema resgatado do álbum “For Now I Am Winter” (2013) - chegaria de mansinho, mas ganharia balanço com a entrada em palco de um percussionista que, recorrendo ao uso de um drum pad, recriou uma atmosfera de tempestade.
Após ter tocado o tema que dá nome ao novo disco, e quando se preparava para apresentar “unfold”, sucedeu o inesperado. Ólafur pretendia demonstrar o funcionamento dos dois pianos semi-generativos (que produzem sequências musicais aleatórias em resposta aos acordes tocados no seu sintetizador, dando asas ao improviso e à experimentação que tanto lhe agradam), mas o sistema informático que os suporta não funcionou, nem mesmo depois ter sido reiniciado por diversas vezes.
O islandês manteve o sangue frio e aproveitou para contar algumas histórias, confessando ter começado a carreira como baterista de uma banda punk-hardcore com o nome Fighting Shit, podendo agora repetir esse palavrão nas salas mais elegantes do mundo. O incidente poderia ter comprometido o concerto, mas seria resolvido longos minutos depois, com recurso a uma cópia de segurança.
A máquina não venceu o homem, mas essa pausa inusitada prejudicou inevitavelmente o ritmo do espetáculo e terá mesmo levado o multi-instrumentista islandês a encurtar a parte mais introspetiva do concerto. Inicialmente previsto no alinhamento, o tema “momentary” acabaria por ser sacrificado, mas felizmente o mesmo não sucedeu com “Beth’s Theme” (tema que integrou a banda sonora da série Broadchurch em 2013 e que explica porque Ólafur continua a ser muito requisitado pela indústria televisiva e cinematográfica), nem com “saman”, belíssimo solo de piano que ecoou num profundo vale de silêncio – cenário ideal para apreciarmos o espaço que respira dentro das melodias melancólicas do nosso anfitrião.
Logo de seguida, chegaria “Happiness Does Not Wait”, música com uma sonoridade próxima de Rodrigo Leão, músico com o qual Ólafur partilhou o palco por ocasião do já referido concerto no CCB. A canção começou com Ólafur ao piano, mas o alquimista das teclas não demorou a sair de cena e a ceder o protagonismo ao talentoso ensemble. O quarteto de cordas assumiu o resto da música com mestria e fez a ponte para o tema “3326”, magistralmente interpretado de pé pelo violinista Karl James Pestka, como se estivéssemos perante um recital de música clássica.
Ólafur regressou depois para recentrar as atenções no seu novo álbum, com uma sequência de músicas em que as notas dos seus “pianos fantasma” ressoaram com a delicadeza de um xilofone. Primeiro, a neblina matinal de “ypsilon”, reforçada por luzes em forma de tubos, transportou-nos para uma espécie de floresta de bambus. Depois, “undir” e “ekki hugsa” trouxeram maior expressividade à boleia de devaneios eletrónicos próximos do tecnho minimalista produzido por Kiasmos, o projeto paralelo que mantém em colaboração com Janus Rasmussen e que foi responsável pelas suas mais recentes visitas ao nosso país. Por fim, “nyepi” fez-nos recuar até ao dia do silêncio que o compositor islandês experienciou algures na Indonésia e que lhe serviu de inspiração para compor o novo álbum.
Nos instantes finais, Ólafur resgatou “3055” do álbum de estreia “Eulogy for Evolution” (colheita de 2007, mas que entretanto foi remasterizado pelo seu amigo Nils Frahm), apresentou os músicos da sua banda e despediu-se com “Near Light”, mais um exemplo de uma sonoridade construída sempre em crescendo, com uma linha de piano sincopada a ser mais tarde envolvida pela harmonia dos violinos e das percussões, que nos levou a recostar na cadeira e a fechar os olhos.
O momento mais emocionante da noite chegaria durante o exigido encore. Sozinho em palco, sentado num dos pianos robotizados, Ólafur interpretou de modo arrepiante o tema “Lag Fyrir Ömmu”, que significa “Canção para a Avó” – aquela que lhe deu a conhecer a música de Chopin e que lhe deu apoio incondicional do início da sua carreira. Sob uma luz ténue e um silêncio sepulcral, vimo-lo a afagar delicadamente as teclas do piano e, de forma completamente inesperada, escutamos o som desvanecido dos violinos, proveniente dos bastidores - como uma manifestação do espírito da sua falecida Avó. Quem disse, afinal, que não pode haver beleza na tristeza?
Bendita sejas, Islândia, que para além de Björk, Sigur Rós, Amiina ou Jóhann Jóhannsson, ainda nos ofereces a música mágica de Ólafur Arnalds, que não precisa de palavras para nos aquecer a alma.
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sábado, 16 março 2019