Reportagem Ornatos Violeta no Coliseu dos Recreios
Poucos são os adjetivos que podem descrever a globalidade do que se passou e do que transmitiu o concerto dos Ornatos Violeta, no Coliseu dos Recreios, na passada quinta-feira
Autênticos colossos da música portuguesa (embora num sentido diferente), estes convidaram-nos a assistir a um dos primeiros concertos da digressão de regresso aos palcos portugueses, após um interregno de mais de 10 anos desde a conclusão deste projeto. Se a ausência era longa, bem se pode dizer que os corações dos portugueses sentiram a falta e a presença da banda originária do Porto... e esta retribuiu o carinho e a atenção dada neste período de maneira estrondosa, na estranheza de se verem gigantes, quando se lançaram bem mais pequenos.
São um daqueles casos em que se começa após terminar: a banda constituída por Manel Cruz, Nuno Prata, Peixe, Kinörm e Elísio Donas pode sofrer do síndrome da fama pelo fim precoce (no fim de 2000, precisamente), mas atualmente não se pode queixar do séquito que permanece. O evento esgotou em poucos meses e o Coliseu encontrava-se mais que lotado, preenchido pelos fãs devotos que atravessam duas gerações e que simplesmente não permitiram perder esta oportunidade. Após um concerto com sucesso no Festival Paredes de Coura deste ano, os Ornatos Violeta vão percorrer seis datas, em Lisboa e no Porto, para voltar a espalhar a sua música e celebrar o passado.
“Muito boa noite. Vamos a isto!” são as palavras de iniciação de Manel Cruz, o carismático vocalista da postura curvada e das palavras belas. “Para Nunca Mais Mentir” é o tema escolhido de abertura, e se parece uma escolha menos óbvia do álbum O Monstro Precisa de Amigos (1999), é claro que os músicos nada devem temer, pois o público tudo sabe na ponta da língua. Em “Pára de Olhar Para Mim”, realça-se o fulgor de uma plateia que venera e ama e pede por mais, em “Dia Mau” é lançado o fogo daquele que foi o primeiro ponto alto da noite e em “Chaga” todos perdem a cabeça. São estes temas que sobrevivem ao teste do tempo e são tão míticos por se tornarem relacionáveis para todos, desde os que apenas os descobrem agora àqueles que acompanharam os Ornatos Violeta de início.
Engane-se quem pense que esta viagem ao passado se deixa ficar pelos grandes êxitos, que na altura pouca recepção tiveram – estes também relembram (e a muito custo, imagine-se) os temas não editados, os inéditos e as raridades pré Cão (1997). “Gato com Dois Chifres” e “Os Sítios Onde Eu o Esqueço” são duas pérolas que apontam a pluralidade musical e de influências desta banda, interessantes ao mostrar o início de tudo. Já “Sacrificar” é outro dos temas tocados, originalmente de Ricardo Almeida, primeiro e ex-vocalista dos Ornatos Violeta, ao qual Manel Cruz saúda. “Não sei onde estás, Ricardo, mas está é para ti, obrigado!”.
Rapidamente se toma o rumo e o foco nos dois grandes álbuns que deixam para trás. Se os temas de Cão, como “Débil Mental” e “1 Beijo = 1000” são como esquizofrénicos, enérgicos, ginasticados, apoiados nas manias e experiências de Cruz e do instrumental muito rock, com uma grande influência de ska, são os temas do Monstro, como a belíssima “Coisas”, a melancólica “Notícias do Fundo” e a desconsolada “Capitão Romance” que se mostram mais introspetivos, mais contidos. No entanto, ambos são recebidos com o mesmo entusiasmo, e em “Deixa Morrer” os Ornatos recebem em palco um jovem rapaz que num cartaz se ofereceu para tocar qualquer coisinha em guitarra acústica e viu o seu desejo cumprido. Boa aposta, pois este safa-se bem e recebe até vénias de Peixe, encarregue da electrizante guitarra elétrica. Um momento entre muitos que fica na memória dos portugueses que assistiram a uma noite tão magnética e tão enorme de música ao vivo.
Foram três os encores tocados pela banda portuense, que não hesitou em trazer certamente o alinhamento mais completo na sua história (em Paredes de Coura apenas tocaram o Monstro de início ao fim e outras raridades) à hoste que passou pelo Coliseu. Ressalta-se a atenção para a divertidíssima “Punk Moda Funk” e os hinos a “Marta” e a “Raquel”, temas muito queridos ao público português, esta última simplesmente cantarolada por todos, com a ajuda da guitarra de Cruz. A enérgica “Dias de Fé” é destacada pela invasão em palco dos amigos dos Ornatos Violeta e marca assim o fim de uma bela e longa noite, tanto de arrepiar como de impressionar, de um dos grandes nomes da música portuguesa.
É certo que torceram narizes e dividiram a opinião com este regresso, que será curto, pelos palcos. Se a genuinidade da tornada violeta é posta em causa, ninguém pode negar que a procura não falta, a sede da presença de um conjunto de músicos que nunca encabeçou um concerto ou festival, nunca encheu salas de espetáculo enquanto “vivia” – algo que é testamento do quão especiais os Ornatos Violeta foram e continuam a ser a quem se presta a ouvi-los. Irrepreensíveis e até arrepiantes, não são apenas uma banda de culto, mas um autêntico fenómeno, um que perdura e parece não ter fim. E ainda bem que ninguém o esquece.
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sábado, 20 dezembro 2014