Reportagem Rufus Wainwright - Lisboa
Quem já assistiu a um, ou mais, concertos de Rufus Wainwright sabe que este é um dos artistas mais talentosos do cenário musical da pop alternativa da actualidade. Dotado de uma voz poderosa, que ganha ainda mais força em palco e acompanhado por instrumentos que toca com à-vontade e habilidade invejáveis, Rufus sabe, sem dúvida alguma, "how to put on a show". Para o dia 7 de Maio, trouxe com ele apenas o piano, para o espectáculo de regresso a Lisboa tão aguardado. Desta vez sem banda de abertura, o público presenciou um one man show no verdadeiro sentido da expressão.
O artista tinha como pedido à audiência o mais absoluto silêncio durante a primeira parte, na qual entrou em palco num fato comprido (com uma cauda, no mínimo, majestosa) ornamentado com penas e brilhantes. Sentado ao piano, no fundo atrás de si via-se uma peça multimédia criada pelo artista Douglas Gordon, que mostra o olho de Rufus Wainwright carregado de maquilhagem preta, piscando lentamente e em expressões diversas, incluindo até lágrimas. Encarando-nos com crueza e sem timidez, este efeito visual resume bem o mais recente álbum “All Days Are Nights: Songs For Lulu” – Rufus concebeu todos os temas para serem acompanhados apenas por piano, incluindo três sonetos de Shakespeare. Talvez por isso não haja músicas em particular que sobressaiam mais que as outras, tal como acontecia nos seus álbuns anteriores.
Who Are You New York? abre o álbum e a primeira parte, que foi uma reprodução exacta do cd. De olhos fechados, entregue de alma e corpo ao piano, perante uma plateia imóvel de olhos fixos no centro do palco (com o olho negro de Rufus a fixar de volta, no vídeo projectado no fundo), o artista dedilhava as teclas do piano com aquela paixão emanada que nos vai sendo tão familiar. Após o primeiro tema, não se ouviu uma palma. Nunca o silêncio foi tão pesado, no bom sentido, carregado de admiração, de concentração, de empatia entre público e cantor, cantor e instrumento. Talvez se tenham ouvido alguns formigueiros causados pelos arrepios provocados.
Seguiu-se So Sad With What I Have e Martha, ambas espelhos do conteúdo do álbum: letras acerca do recente falecimento da mãe, a cantora folk Kate McGarrigle – que visitou Lisboa juntamente com o filho na sua última vinda – e desorientação, ambiguidade e insatisfação.
Enquanto o piano tocava e (quase) mais nada se ouvia para além da voz potente de Rufus, o álbum decorria perante os nossos olhos e ouvidos, tanto de forma visual como áudio. Temas como True Loves e What Would I Ever Do With A Rose podem ter uma abordagem mais simplista em termos de letras, mas todo o íntimo, todos os medos e segredos do artista estão nelas patentes, de forma despreocupada e descontraída, em jeito de «I don’t care».
Les Feux D'artifice T'appellent, retirada da sua ópera "Prima Donna" – estreada este ano – revelou-nos mais do seu génio, enquanto Zebulon, que encerrou a primeira parte, nos levou de volta a recordações da sua mãe, tema este muito bem conseguido e brilhante fecho de espectáculo.
A saída voltou a ser dramática, marcada pelo passo vagaroso que levou Rufus de novo para fora do palco. Após o intervalo, o cantor voltou vestido de forma casual (os alfinetes de diamantes são mais que habituais em Rufus Wainwright) e bem-disposto, falador e repleto de humor, como nos tem vindo a habituar.
Beauty Mark, também acerca da sua mãe, retirada do primeiro álbum, “Rufus Wainwright” iniciou a segunda parte, em que o piano continuou a ser a única companhia do cantor. De seguida, deu as boas-vindas à audiência e denominou a sua tour como «apenas mais uma desculpa para usar collants». Num ambiente mais descontraído, leve e alegre, Rufus interpretou temas de todos os seus álbuns anteriores, enquanto agradeceu o silêncio da primeira parte, tendo-lhe permitido sentir o espectáculo com mais intensidade e concentração.
Entre músicas como Memphis Skyline – o seu tributo a Jeff Buckley, que odiou até morrer pelo seu talento e beleza, antes de o adorar – ou The Art Teacher, que fez queixos cair, o músico elogiava Portugal, país de «faces rosadas», voltou a comparar Lisboa a Paris, antes da soberba Leaving For Paris No. 2, lamentou o tempo cinzento que se fazia sentir na capital e fez piadas sobre o Papa.
Os temas sobre as suas relações familiares prosseguiram com músicas dos seus álbuns “Want One” e “Want Two”, em Little Sister e Dinner at Eight, uma das suas melhores obras até à data, de longe. Seguiu-se Cigarettes and Chocolate Milk, uma das suas mais conhecidas que pôs membros do público a cantar, antes da saída para encore. Aplausos e uma ovação em pé pela Aula Magna foram o cenário com que Rufus deixou e voltou ao palco.
Poses, mais um belíssimo tema do seu segundo álbum homónimo, antecedeu Going To a Town, de “Release the Stars”. Por fim, o cantor voltou a falar da mãe, de como o seu passeio de bicicleta até Belém e à Torre o tinha feito recordá-la e à última vez em que ali tinha estado, na sua companhia. Depois de uma bela metáfora sobre o tempo, o dia, o mapa-mundo desenhado no chão do monumento e o falecimento da mãe, tocou um tema original de Kate, The Walking Song, que falava dos tempos felizes do seu casamento com o pai de Rufus. Um fim em beleza, numa actuação onde o espírito da sua mãe esteve presente nos vários temas e letras, quer antigos, quer recentes.
Rufus Wainwright provou o seu estatuto de camaleão, de artista que se reinventa em cada álbum e que demonstra a essência de cada um através de tudo: desde a arte e grafismo dos álbuns, ao cenário nos seus concertos, passando pelo seu vestuário em palco. Para este concerto, apresentou-se dramático, cru e directo, tal como o seu mais recente álbum: o seu trabalho mais puro até à data. Rufus e um piano bastaram para encher a Aula Magna, bem como os ouvidos e peitos de todos os presentes.