Reportagem Sharon Jones & The Dap Kings
Em Portugal pela quarta vez, Sharon Jones e os seus Dap-Kings voltaram a dar um concerto magnífico, desta vez numa Aula Magna praticamente lotada. Mas o espetáculo que encerrou uma extenuante digressão europeia foi acima de tudo um momento de celebração de uma vencedora com alma renovada que, após ter fintado um cancro, prossegue a sua missão: através da música (com raízes no soul dos anos 60 e inícios de 70), dar às pessoas aquilo que elas querem.
Na bagagem trouxeram «Give the People What They Want», o sexto disco em doze anos de carreira. Terá sido quase um ato de exorcismo a decisão de tocar quase na íntegra o “álbum da doença” (assim batizado pela própria artista), não tivesse o início das gravações ficado ensombrado pelo falecimento da sua mãe e o final coincidido com um diagnóstico de cancro no pâncreas, que os obrigou a adiar o lançamento do álbum para este ano.
Ao contrário do que estava previsto, não houve primeira parte do italiano Luca Sapio & The Dark Shadows. O aquecimento esteve por isso a cargo dos próprios The Dap-Kings, a banda que atingiu a ribalta após a participação nas gravações do famoso álbum «Back to Black» de Amy Winehouse, a convite do produtor Mark Ronson. O talentoso conjunto - conhecido por abdicar de tecnologias digitais tão em voga na cena R&B atual, para assim melhor resgatar o espírito old-school da música soul – apresentou-se com dois saxofonistas, um trompetista, um tocador de bongos/congos, um baterista, dois guitarristas e um baixista convidado (que substituiu Bosco Mann, que também é produtor e compositor da banda).
À passagem das 22:00, o guitarrista Binky Griptite assumiu os comandos, prometendo surpresas e convidando todos os presentes a levantarem-se das cadeiras para dançar. Após um tema instrumental com funk ao estilo de James Brown, o protagonismo foi entregue às “Dapettes” Saundra e Starr – dueto responsável pelas (poderosas) vozes de apoio - que deram a conhecer três canções do álbum de estreia que será lançado em breve, com destaque para a promissora «Hot Shot».
Até que, numa introdução ao estilo dos anos 60, Griptite deu o mote: “Ladies and gentlemen, are you ready? Please welcome the star of our show, Miss Sharon Jones!”. Sob uma chuva de palmas, uma mulher de palmo e meio com pernas musculadas irrompe pelo palco, balanceando-se num elegante vestido branco com aplicações prateadas e sapatos de salto a condizer. A mulher que agora temos à nossa frente enfrentou com determinação não só as agruras de um recente passado de doença grave, mas também doutro mais longínquo, numa altura em que a dificuldade de afirmação no mundo da música a levou a ser guarda prisional. Não admira que um dos seus álbuns tenha o apropriado título «I Learned The Hard Way». A propósito, diga-se que ontem o único aspeto a lamentar (para além de algum exagero nos sons agudos) foi o facto de o alinhamento não ter incluído a magnifica canção que deu nome a esse álbum, nem a excelente cover «This Land is Your Land» (incluída no disco «Naturally» de 2005).
Abriram a todo o gás com «Retreat» e «If You Wait», com Sharon Jones entretanto a confessar que estava aliviada por ser o último espetáculo da tour europeia (25 noites praticamente consecutivas não é para muitos!) mas ao mesmo tempo prometendo muita energia e festa. Assim foi. Em «He Said I Can» convidou João, o primeiro de muitos espetadores que ao longo da noite dançariam com ela no palco. «People Get What They Deserve» teve direito a prolongamento, no qual um furacão chamado Sharon Jones nos ensinou vários estilos de dança (com nomes tão curiosos como Boogaloo, Jerk, Swim, Mashed Potato ou Funky Chicken).
Por essa altura já não havia ninguém sentado e muitos tinham deixado os seus lugares para ocupar os corredores do anfiteatro. «Slow Down, Love» chegou na altura certa para todos recuperarem o fôlego, embora por pouco tempo. Após «Long Time, Wrong Time», tempo para novas surpresas. Sharon pede seis dançarinas voluntárias mas o entusiamo era tal que foram cerca de vinte a subir a um palco transformado em pista de dança, para um momento de pura diversão. Seguiu-se uma versão de «Every Beat of My Heart», com Sharon a trocar os seus 58 pelos 18 anos que Gladys Night tinha quando gravou o tema. Depois, a provocante «You’ll Be Lonely» serviu de pretexto para mais uns passos de dança com outro espetador.
Decorrida uma hora de espetáculo, chega o momento mais emocionante e dramático da noite. Sharon Jones lembra que «Get Up and Get Out» passou a ter um significado totalmente diferente depois de ter superado o cancro. Depois de ter imitado a voz e o gingar de Tina Turner (com quem tem em comum o facto de ter começado como cantora gospel no coro da igreja), descalçou-se e recriou a letra da música para contar-nos, de forma desabrida mas sem qualquer vitimização, as tormentas por que passou: o hospital, os tubos em todo o corpo, o espelho que um dia olhou e cujo reflexo não lhe agradou, a fotografia já sem cabelo que colocou no Facebook e que motivou inúmeras mensagens de carinho dos seus fãs. “Tonight I’m happy because… I’m happy! I’m still me”, gritou a plenos pulmões, antes de agradecer o apoio da banda que nunca a deixou desistir. Arrepiante, sem dúvida.
Despediram-se com «100 Days, 100 Nights», o vibrante clássico de 2007 que serviu para Sharon apresentar cada um dos membros da banda. Para o encore reservaram «Stranger to My Happiness», com a voz de Sharon a lembrar Aretha Franklin. Em tom de festa, ainda houve tempo para a cantora mostrar quão exímia é na interação com o público, ao desafiar os fãs para um meet & greet e permitir selfies com algumas pessoas da primeira fila que se tinham abeirado do palco. Quase a dobrar os 60, Sharon Jones continua a ser um animal de palco com um vozeirão e uma energia inesgotável que não a deixa parar um segundo. Ao vê-la sacudir o corpo daquela forma tão contagiante, custa acreditar que há precisamente um ano se encontrava entre a vida e a morte.
Quem esteve ontem na Aula Magna, ou quem já assistiu a um concerto de Sharon Jones & The Dap-Kings, sabe que ao vivo as canções tornam-se mais cativantes e festivas, ganhando uma dimensão que transcende largamente o trabalho de estúdio. Porque neste caso não é o público que puxa pela artista, é a artista que impulsiona a plateia e a convida a participar na farra. Quem ainda não a conhecia, decerto que terá ficado rendido ao seu enorme talento.
Obrigado Sharon, pelo teu exemplo de garra, perseverança e desmesurada paixão. E sobretudo por quase duas horas de música feita com uma alma tão intensa, que tem o dom de salvar vidas. Foi um domingo inesquecível.
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sábado, 20 dezembro 2014