Reportagem Silence 4 em Lisboa
Ano de 2001. Terminava de forma pouco percetível a curta história (apenas dois discos editados) de uma banda de Leiria que inesperadamente se tornou conhecida no final dos anos 90, depois da gravação de uma versão de A little respect, um tema dos Erasure. A partir daí, os Silence 4 transformaram-se rapidamente num fenómeno de sucesso nacional, com um conjunto de canções acústicas e melancólicas, cantadas a duas vozes (David Fonseca e Sofia Lisboa) e quase exclusivamente escritas em inglês. Uma opção polémica mas plenamente assumida, até no nome escolhido para o grupo. Essa opção, que inicialmente constituiu um obstáculo na procura de uma editora, acabaria por vingar de tal forma que David Fonseca não abdicou do idioma anglo-saxónico quando decidiu seguir uma carreira a solo em 2003.
Ano de 2014. A frase “I guess I’ll try again tomorrow” parece ganhar um novo sentido.
Quase catorze anos depois do último concerto, os Silence 4 reuniram-se para uma mini-digressão, que serviu para cumprir um desejo de Sofia Lisboa, após uma luta travada contra a leucemia. Lançaram também Songbook 2014, uma coletânea discográfica que inclui um DVD do célebre concerto realizado em 1998 no ex-Pavilhão Atlântico. Precisamente o local agora escolhido para fazer a despedida, que há anos tinha chegado sem avisar…
Definitivamente, o público parece ter aderido sem reservas ao nostálgico regresso aos palcos de várias bandas portuguesas que marcaram outras gerações: Ornatos Violeta, Sétima Legião, Resistência, Jáfumega, Heróis do Mar… e agora os Silence 4.
Depois de um concerto esgotado em Guimarães, terão sido 18 mil (segundo as próprias contas de David Fonseca) a encher a MEO Arena, sala onde ao longo de quase três horas o quarteto - acompanhado por Paulo Pereira, nas teclas - distribuiu emoções, surpresas e êxitos: dez temas de cada um dos dois álbuns editados, propositadamente tocados na sua forma original, sem quaisquer rearranjos.
Antes da entrada em palco, nos dois ecrãs passam imagens dos retalhos da vida do grupo, que reavivam a memória de um público que surpreendentemente esteve longe de se cingir a maiores de 30 e que terminam com a mensagem “So glad you are here with us”… Estava dado o mote.
Abre-se a cortina vermelha e a banda entra sem poupanças: começam com A little respect e logo à quarta música entregam Borrow, “a música que se tornou muito maior do que nós pensávamos”.
Pouco depois, surge a primeira surpresa da noite. Orgulhosamente apresentado como um dos heróis da banda, Sérgio Godinho junta-se para cantar (um pouco fora de tom, diga-se) “Sextos sentidos”, tema cuja letra é da sua autoria. Quando o escritor de canções sai de cena, faz-se ouvir bem alto o som de um motor e eis que, suspenso, um Ford Capri azul desce dos céus para dar início ao frenético My friends (…and my car, claro está). Em cima da viatura, empunhando um megafone, David Fonseca provoca a maior explosão da noite.
Segue-se To give e, enquanto vão passando as imagens subaquáticas do respetivo teledisco, David Fonseca canta de forma apropriada “still around after all these years”… Acendem-se os primeiros isqueiros e soltam-se braços no ar.
Após mais três incursões ao segundo álbum, dá-se lugar à emoção com Sofia Lisboa a confessar que julgou que nunca mais cantaria Angel Song. Mas, depois de ter vencido uma luta contra o cancro, ei-la a cantar em causa própria “I want you to know, you’re not dead”. No fim, é abraçada por cada um dos membros da banda ao som de uma imensa chuva de palmas.
Já depois de o cenário ter ficado completo com a entrada de um farol gigante (juntando-se a outros adereços que entretanto já tinham surgido, tais como um conjunto de cadeiras suspensas) surge “Eu não sei dizer” - uma das suas muito raras canções em português e que, por e esse motivo, em tempos fez David Fonseca corar de vergonha perante os restantes membros de uma banda que sempre insistiu na teimosia de cantar em inglês.
Decorrida hora e meia, o primeiro set do concerto termina ao som do violino de Sleepwalking Convict, mas desta vez em modo loop… para dar tempo à segunda surpresa da noite. Numa opção arrojada, o quarteto reaparece minutos depois num pequeno palco circular montado no centro da arena. A ideia seria recuar no tempo e recriar o ambiente intimista da primeira sala de ensaio. Louve-se a ideia, apesar das piores condições acústicas. Começam com Invicible, um original dos Muse que a irmã de Sofia pôs a tocar no computador para superar os tempos mais complicados e que agora é dedicada a quem lhe salvou a vida ao doar a medula. O desafio é exigente e, visivelmente emocionada, Sofia acaba por desafinar… mas de que importa isso, quando no final a sua irmã sobe ao palco e as duas se agarram num abraço sentido?
Ainda na “sala de ensaios”, ouvem-se dois temas que não chegaram a ser incluídos no primeiro álbum, um dos quais curiosamente deu nome ao disco. Terminam com Goodbye Tomorrow e as velas que em tempos costumavam colocar no chão são substituídas pelas luzes de milhares de telemóveis que formam um admirável céu estrelado.
Dobradas duas horas de concerto, voltam ao palco principal para tocar Search me not e Breeders, esta última marcada pela poderosa guitarra-baixo de Rui Costa. O momento seguinte dissipou quaisquer dúvidas de que, mais do que um concerto, aquela noite servia para celebrar a própria vida. David Fonseca anuncia que, com os quatro concertos da Songbook 2014, conseguiram angariar 30 mil euros para a Liga Portuguesa contra o Cancro. A banda entrega ao seu presidente o cheque gigante e permite mesmo que este faça um discurso de sensibilização para a doença.
Na reta final, voltam a tocar as três canções mais orelhudas do cardápio. Borrow, My friends e A little respect são, agora mais do que nunca, comungadas por um cantar coletivo de toda a sala. A banda despede-se mas volta pouco depois, chamada por um ruidoso público. Para o fim estava reservada mais uma canção repetente, aquela que se tornou especial por razões óbvias: Angel Song descarrega mais emoção, Sofia desce do palco para cumprimentar a primeira fila e volta com um cachecol dos Silence 4 ao pescoço.
Consumava-se assim um curto regresso que serviu para reacender a memória (dos presentes e dos que em casa aproveitaram a transmissão radiofónica), antes de se colocar um ponto final na bonita história dos Silence 4. E agora assim, podemos dizer literalmente: silence becomes it.
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sábado, 20 dezembro 2014