Reportagem Sufjan Stevens no Coliseu dos Recreios
De vez em quando, somos presenteados com concertos que são tão unicamente fantásticos e irreais que se torna difícil de descrever a experiência que retirámos deles. Foi este o caso da segunda passagem por terras lusas de Sufjan Stevens, o cantor/intérprete maravilha de uma mente e criação singulares, que há muito já marcou lugar nos grandes pesos da música alternativa. Se em 2004, o vimos no Festival para Gente Sentada como tímido e introvertido, agarrado ao banjo, é no palco do Coliseu dos Recreios que podemos verdadeiramente testemunhar uma metamorfose completa. O artista norte-americano levou o público português por uma viagem cósmica sobre o amor e a perda durante quase duas horas e meia, onde uma explosão sonora e visual estava escondida em todos os cantos, e marcada por uma performance que foi, acima de tudo, hipnotizante.
Antes de nos debatermos sobre o artista da noite, cabe-nos falar um pouco sobre DM Stith, que deu um dos mais curtos concertos de abertura em memória recente. David Michael Stith, nova-iorquino, apresentou-se simpático e afável, sozinho num palco com apenas a sua guitarra. A sua música destaca-se pelo punho folk, com alguns laivos de freak folk e até psicadélico, tal como por uma voz carismática e as mudanças harmónicas estranhas e sombrias. Durante apenas quatro músicas, como ‘Thanksgiving Moon’ e ‘Pigs’, o artista cativou com dedilhados acústicos e loops de pedais, que para além de terem uma inegável qualidade, demonstram que ali talento suficiente para impressionar uma plateia imensa – pena apenas a curta duração da sua demonstração.
Chegou o momento da noite. O palco, recheado de instrumentos, de cenário estrelado, foi ocupado, por volta das dez da noite, por cerca de uma dezena de músicos, todos envolvidos em fitas fluorescentes e adereços extravagantes. É com ‘Seven Swans’ que Sufjan Stevens inicia, ecoando a sua voz doce e delicada sobre o dedilhado do banjo – é este o artista que todos conhecemos, calmo e introvertido e dedicado às histórias e ao cariz humano que está em tudo o que nos rodeia, mas não o será por muito tempo. Ao mesmo tempo, os variados músicos dão ímpeto imperioso à melodia assombrosa da canção, que apenas precisa da presença dos artistas para hipnotizar toda a plateia. Abrem-se as asas de Sufjan e, com isto, uma verdadeira apoteose sonora envolve a sala de espetáculos – está, assim, lançada a base de um concerto que se provou inesquecível.
Esquece-se o banjo, esquece-se o instrumento tradicional, e embarca-se, então, numa expedição espacial sobre o início e o fim do tempo, na nave que é o Coliseu dos Recreios. É altura da experimentação electrónica e de toda a parafernália que a acompanha, nos novos temas como ‘Too Much’ e ‘The Age of Adz’, que prontamente se seguiram, do álbum homónimo lançado em 2010. O próprio músico explicou, entre as pausas, o porquê de uma mudança musical vincada como foi a dele: tratou-se de uma libertação dos medos e de uma autêntica busca do desconhecido, arriscando e experimentando com novos sons e novos equipamentos. No entanto, a mudança não está apenas no seu material, como também na sua própria performance, pois Stevens não hesita em dançar a som da música, ao ritmo das duas dançarinas que se exercitavam atrás de si. Está, claramente, confortável na sua nova pele.
O norte-americano, oriundo de Detroit, manteve uma boa comunicação com a hoste de portugueses na sala de espetáculos, chegando mesmo a falar de Royal Robertson, o artista paranoide esquizofrénico e autoproclamado profeta do Louisiana, que serviu de musa na criação do novo esforço musical. Os desenhos imaginativos e fantasiosos do artista passaram em pano de fundo, misturando o oculto e o espaço de uma maneira quase febril e infantil, conseguindo ser muito chamativos. Sufjan dedica-lhe ‘Get Real Get Right’, um tema de apelo aos “pés na terra” e à lucidez mental que nada tem de contido.
Outro aspecto importante a referir é o facto de que os aspectos visuais e cénicos do espetáculo do norte-americano são uma parte muito importante deste, pois não só o vestuário, como os adereços de palco contribuem para a criação de uma experiência única, não só para os espetadores como também para o próprio artista. As imagens projetadas no palco são celestiais e coloridas, os balões e a máscara de macaco lembram a teatralidade dos Flaming Lips, as sequências de dança lembram M.I.A. e as suas ajudantes e o rigor e a criatividade do vestuário as próprias excentricidades em palco de Bjork. O esplendor visual não era coisa que faltasse nos espetáculos ao vivo de Sufjan Stevens, no entanto, está mais expandido, mais marcado, tal como a sua música. Após as mais calmas ‘Enchanting Ghost’ e ‘The Owl and the Tanager’, ambas do recente EP All The Delighted People, coube a temas como ‘Vesuvius’ e ‘I Want to be Well’ estabelecer o ambiente alegre e animado de festa, que culminou na fantasticamente esquizofrénica ‘Impossible Soul’ – a verdadeira pièce de résistance de The Age of Adz – tema onde o auto-tune, os devaneios electrónicos e a euforia contagiosa convivem em harmonia.
Se os cépticos ainda não estavam convencidos, foi após um pequeno intervalo, no encore, que todos ficaram rendidos. Três temas de Illinois e três razões para o público alcançar uma estado de entusiasmo completo – primeiro, ‘Concerning the UFO Sighting Near Highland, Illinois’, calma e harmoniosa, seguida por ‘Casimir Pulaski Day’, assombrosamente bela, acompanhada pelos elementos nos instrumentos de sopro. No entanto, a apoteose chegou no momento da bem conhecida ‘Chicago’, momento final do concerto, que para além de trazer um bombardeamento de balões, pôs todos a cantar e a dançar, sem a mais pequena preocupação.
Decerto que o concerto não foi perfeito – a demasiado prolongada ‘Impossible Soul’ (tocada em quase trinta minutos!) que cansou ligeiramente, o facto da setlist ter sido marcada quase exclusivamente por material de The Age of Adz e os inconvenientes causadores de distúrbio sonoro na plateia são algumas das pequenas falhas que marcaram o concerto.
No entanto, se pensarmos bem, a autêntica jornada cósmica que o artista nos proporcionou foi motivo de constante e intenso arrepio e encanto, e se calhar, se calhar... esteve mesmo perto da perfeição.