Reportagem The Cure em Lisboa
Mesmo sem editar qualquer álbum de originais nos últimos 8 anos, os ingleses The Cure continuam a arrebatar multidões em defesa de um legado musical ímpar. A sua oitava passagem por Portugal foi uma emocionante viagem ao passado em quase três horas, com uma demolidora reta final que deixou os devotos que encheram a MEO Arena com a alma e o coração devidamente curados.
Rezam as crónicas que Robert Smith, carismático líder dos The Cure, se despediu do antigo Estádio de Alvalade em 1989 com um "goodbye and I'll never see you again”. Vinte e sete anos depois dessa primeira visita a Portugal, a oitava presença deles por cá é a prova que a banda inglesa sobreviveu a tudo, inclusivamente aos humores dos próprios membros, a julgar pela quantidade de desentendimentos e de encarnações por que passou ao longo de quase quatro décadas de altos e baixos.
Desde esse episódio caricato que cada passagem em solo luso tem sido encarada como a derradeira oportunidade de assistir a um concerto do conjunto formado em Crawley, nos arredores de Gatwick, em 1978. Uma banda que conquistou o estatuto de lenda a partir de um estilo muito original, não apenas a nível de sonoridade (praticantes de um rock alternativo que os colocou numa classe à parte, designada por “vanguarda”) mas também visualmente (roupa a condizer com o negrume das suas canções). Um estilo que entretanto influenciou muitas bandas, como os The Twilight Sad, que embalados pelo vocalista James Graham (com um cerrado sotaque escocês e trejeitos roubados a Ian Curtis) aqueceram de forma competente uma plateia ainda a meio gás.
Os The Cure podem não ser relevantes na atual cena musical (é preciso recuar até 2008 para encontrar o último álbum de originais e o seu mais recente sucesso comercial foi editado há 24 anos) mas continuam a arrastar uma multidão de fiéis. Essa devoção foi bem visível numa quase lotada MEO Arena, onde já tinham atuado em 2008 e para onde confluíram muitos trintões e quarentões, alguns acompanhados pelos filhos. Enquanto furávamos por entre a plateia fomos ouvindo conversas na língua inglesa, francesa, italiana e espanhola que atestam o culto em torno dos Cure. Ao nosso lado, um casal vindo da República Checa repetiu a dose servida em Praga e confidenciou-nos que uns amigos já tinham assistido a uma dezena de concertos na presente tournée. E para os fãs mais resistentes foi agendada uma festa after-party, convocada nas redes sociais.
Único membro desde a primeira hora, Robert Smith sobreviveu aos ácidos e ganhou uns quilos a mais - os 57 anos não perdoam, ainda que a roupa preta (sempre preta!) ajude a disfarçar - mas continua igual a si próprio: tímido e pouco falador, escondendo-se por detrás de cabelos desgrenhados, de olhos maquilhados e de lábios esborratados de vermelho a contrastar com uma tez tão pálida quanto a do super-vilão The Joker. Smith esteve irrepreensível na guitarra, ora elétrica ora acústica, e cantou com o mesmo estilo excêntrico que o tornou num ícone de tantas gerações.
“Robert you are my cure”, lia-se num cartaz bem levantado na primeira fila. Smith e companhia trouxeram a receita para a cura: uma primeira parte e um primeiro encore em ritmo controlado, com atmosferas sombrias que fizeram as delícias dos die-hard fans; e um segundo e terceiro encores em registo “best of”, com quase todos os êxitos que são reconhecíveis logo ao primeiro acorde. Tal como na última passagem por Portugal (Optimus Alive’2012), o alinhamento privilegiou o período 1985-1992 mas não se ficou por aí, porque no caldeirão musical dos Cure o pós-punk e o rock gótico coexistem pacificamente com a pop reluzente. Desta vez, apenas os álbuns “Bloodflowers” (2000) e “The Cure” (2004) não tiveram direito de antena.
A primeira parte abriu com “Open” e fechou com “End” (tal como no álbum “Wish”, de 1992) e revelou sobretudo a faceta mais densa dos Cure, com temas como All I Want, Primary, Shake Dog Shake e One Hundred Years. Este último surgiu como um autêntico murro no estômago, acentuado pela projeção a preto e branco de imagens do Holocausto e pela distorção da guitarra de Reeves Gabrels, músico americano recrutado em 2012 e que fez parte dos Tin Machine, projeto criado por David Bowie no final dos anos 80. Porém, os primeiros aplausos fervorosos surgiram à boleia de Push e InBetween Days (do álbum “The Head of the Door”) e de Pictures of You e Lovesong (extraídos de Disintegration), altura em que muitos também usaram os telemóveis para perpetuar o momento, enquanto os mais emocionados preferiram fechar os olhos para melhor aproveitar um breve regresso à adolescência.
Durante o primeiro encore navegou-se em àguas mornas, primeiro com Step into the Light (um dos dois temas inéditos que têm vindo a ser tocados nesta Tour e que dão azo a especulações sobre a edição de um novo álbum) e depois com a sequência Want e Burn. A agitação só voltou quando os The Cure recuaram ao ano de 1980 para resgatar um par de canções do álbum Seventeen Seconds: Play for Today foi trauteada por uma plateia em ambiente festivo e A Forest tornou-se ainda mais esquecível após um momento de perfeita sintonia entre a guitarra de Smith e o baixo de Simon Gallup, devidamente acompanhado pela cadência das palmas de um público banhado por focos de luz verde. A banda já levava duas horas em palco e saiu de cena sob um barulho ensurdecedor. Mas os ânimos ainda estavam só a aquecer…
O segundo encore começou de forma brilhante com a veloz Fascination Street, marcada pela guitarra desvairada de Reeves, pelo baixo galopante de Gallup e pelos sintetizadores pop de Roger O’Donell. Logo depois, um Robert Smith finalmente liberto da guitarra, soltou-se em estranhos movimentos de dança ao mesmo tempo que ia tocando uma campana em Freakshow, tema interpretado apenas pela segunda vez na presente Tour (à semelhança de The Blood, canção com ritmo flamenco que já tinha sido tocada na primeira parte).
O que sucedeu daí em diante foi um desfilar de êxitos que marcaram gerações e que levantaram definitivamente as bancadas do Meo Arena. Robert Smith pegou na guitarra acústica e os Cure partiram para uma reta final demolidora. Friday I’m in Love foi recebida com histeria, Just Like Heaven cantada em coro (enquanto no ecrã de fundo a imagem de um penhasco fazia recordar o célebre vídeo dirigido por Tim Pope em 1987) e Boys Don’t Cry não permitiu que o ritmo baixasse, tendo O’Donell trocado nessa altura os comandos do seu sintetizador por uma pandeireta.
O ambiente estava ao rubro mas ainda havia uma mão cheia de trunfos para lançar no derradeiro encore. A projeção de uma enorme teia de aranha denunciou a chegada de Lullaby e, com a sala completamente apinhada de gente em êxtase, o verso “and I feel like I'm being eaten by a thousand million shivering furry holes” nunca fez tanto sentido. Hot, Hot, Hot!!! exigiu braços no ar e a lúdica Let’s Go to Bed serviu de pretexto para um pezinho de dança de Mr. Smith, enquanto o baixista Simon Gallup não poupou nas poses exageradas (foi o único que não parou um segundo desde o início, envergando orgulhosamente uma t-shirt manga cava dos Vilolet Vendetta, banda do seu filho Eden). Os primeiros acordes de Close to Me trouxeram um episódio hilariante quando, ao colocar o microfone no suporte de apoio, Robert Smith provocou um estridente feedback que ecoou nos auriculares de Roger O’Donell. Em jeito de pedido de desculpa, Smith correu em direção ao teclista e deu-lhe um abraço, que seria carinhosamente devolvido por O’Donell no final da canção. Pois é, quem os viu e quem os vê.
"Why Can’t I Be You?” fechou em apoteose uma liturgia de 31 salmos que durou quase três horas. Robert Smith percorreu o palco de uma ponta à outra, levando a mão ao peito em jeito de agradecimento. Desta vez não se atreveu a repetir a expressão “nunca mais”, mas os seus devotos continuam temerosos: terão os The Cure dito adeus “numa noite como esta”? Resta-lhes confiar na pista deixada no início de It Can Never Be the Same, outro tema inédito estreado na presente digressão mas que não foi tocado esta noite: “Don't worry, I smile/I'll miss you, but it's not like you're gone/Don't worry, I smile/It's not like there won't be another one”…
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Organização:Everything is New
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segunda-feira, 28 novembro 2016