Reportagem The Divine Comedy em Lisboa
No regresso dos The Divine Comedy a Lisboa - para apresentar o novo álbum “Foreverland” - Neil Hannon foi o entertainer que se conhece: vestiu-se de Napoleão e de banqueiro, serviu bebidas em palco e sentou-se na plateia, tocou os clássicos e encheu a alma dos fans que esgotaram o Teatro Tivoli BBVA. Reportagem de um concerto entre o sagrado e o profano, o teatro e o cinema, a História e a política… e, claro está, entre o divino e a comédia.
The Divine Comedy é o alter-ego de Neil Hannon, único membro que se mantém desde o início do projeto formado na Irlanda do Norte, em 1989. Desde há vários anos, ele é um músico independente que assume a responsabilidade de todo o processo criativo, recrutando depois outros músicos para as sessões de gravação e as digressões ao vivo.
Hannon tinha atuado a solo nas últimas passagens por Portugal (em 2010 no Teatro Maria Matos, em Lisboa, e em 2013 no Festival Manta, em Guimarães) mas desta vez veio acompanhado por uma banda que deu outro fulgor à pop orquestral dos Divine Comedy. Destaque especial para Andrew Skeet (sintetizador) e para Ian Watson (acordeão e sintetizador), muito eficazes na tarefa de replicar a grandiosidade sinfónica do trabalho de estúdio.
Já passam 27 anos desde “Fanfare For The Comic Muse”, o álbum de estreia que tinha uma sonoridade rockeira, claramente influenciada pelos americanos R.E.M. Antes do início do concerto, ouviu-se a voz de Michael Stipe em “Nightswimming” e nessa altura pensámos se isso seria um sinal de que Niel Hannon tinha feito as pazes com o seu primeiro disco… mas este foi novamente preterido no alinhamento (tal como “A Short Album About Love”, de 1997). Todo o restante catálogo dos Divine Comedy foi revisitado, sobretudo os registos da presente década (“Bang Goes The Nighthood”, de 2010, e o novo “Foreverland”, lançado no ano passado) e da segunda metade dos anos 90 (“Casanova” e “Fin de Siècle”).
Aos 46 anos, Neil Hannon continua o mesmo gentleman sedutor, dono de uma voz que reclama que ouçamos as palavras e de um sentido de humor extremamente apurado. Na noite de sábado o músico irlandês proporcionou momentos hilariantes e inesperados. Desde as tentativas de falar em português com a ajuda de uma cábula (“Thank you, Google Translate!”, confessou a certa altura), até ao breve interlúdio a meio do concerto, altura em que ofereceu aos membros da banda várias bebidas que estavam guardadas num vistoso móvel em forma de globo terrestre, enquanto “Spanish Flea” (1965) de Herb Alpert & The Tijuana Brass rodava num gira-discos.
Foi um concerto que nos encheu as medidas. Houve espontaneidade: “Count Grassi’s Passage Over Piedmont” constava do alinhamento mas em cima da hora foi trocada por “Bad Ambassador”, único tema resgatado do disco “Regeneration” (2001). Houve referências cinematográficas: ouviram-se excertos pré-gravados dos filmes “La Dolce Vita” e “L’amore”, nos temas “The Certainty of Chance” e “Generation Sex”. Houve teatralidade, com Neil Hannon ora trajado de Napoleão Bonaparte para encarnar o imperador francês (“Napolean Complex”), ora vestido de fato, gravata e chapéu de coco para denunciar a incúria dos grandes banqueiros (“The Complete Banker”). Ou quando, a meio do fantástico “Our Mutual Friend”, desceu do palco e cantou sentado no meio da plateia, deitando-se no chão no momento da estrofe “and then we kissed and fell unconscious”.
A parte romântica do concerto chegou logo depois, com Neil Hannon e Tosh Flood de guitarra acústica nas mãos e Simon Little a trocar o baixo convencional por um baixo Ukulele. Com todos os músicos sentados em bancos altos, “Funny Peculiar” foi cantada em dueto com Lisa O’Neill, conterrânea que tinha deixado excelentes indicações na abertura do espetáculo. Em jeito de suave embalo, seguiram-se as lindíssimas “A Lady Of a Certain Age” e “Songs of Love”, a última das quais dedicada a um animado grupo de irlandeses que não passou despercebido nos camarotes. Uma dedicatória bastante apropriada porque trata-se de uma reinterpretação do célebre tema que Hannon compôs em 1995 para a sitcom irlandesa “Father Ted” e que no ano seguinte seria incluída no disco “Casanova”.
Em noite de derby futebolístico, os Divine Comedy jogaram em casa perante um público completamente rendido. A febre de sábado à noite subiu na reta final do concerto. Os espetadores abandonaram finalmente o conforto das cadeiras e Neil Hannon, já em camisa e de guitarra elétrica em riste, atirou-se energicamente a uma sequência de clássicos (“At The Indie Disco”, “Becoming More Like Alfie”, “Something For The Weekend”, “I Like”) que terminaria de forma perfeita a bordo do conhecido “National Express”.
Uma chuva de aplausos trouxe-os de volta ao palco para um encore que começou com “Assume The Perpendicular” e fechou com dois temas de “Promenade”, álbum conceptual editado em 1994. Em “A Drinking Song” brindou-se à ironia quando, após a estrofe “For there's life in the old world yet! / There'll always be an England”, Hannon confessou “I’ve just realized I wrote this song before Brexit!”. Para a despedida ficou reservada a magnífica “Tonight We Fly”, ao ritmo frenético da bateria de Tim Weller e do piano eletrónico de Andrew Skeet.
Quase duas horas depois, chegava ao fim um concerto memorável, que a todos recordou quão original, inteligente e irreverente é a música de um músico genial chamado Edward Neil Anthony Hannon. E como ele ainda tem o condão de nos fazer sentir infantilmente felizes.
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Organização:Everything is New
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sexta-feira, 22 novembro 2024