Reportagem Tindersticks em Lisboa
Os veteranos Tindersticks regressaram a Lisboa para apresentar quase na íntegra The Waiting Room, o novo trabalho que representa uma espécie de nova vida para a banda inglesa formada no início dos 90. Num espetáculo intimista com quase vinte músicas, não faltaram também alguns clássicos que encantaram a plateia de devotos que encheu o Teatro Tivoli BBVA.
Os Tindersticks são presença regular em Portugal mas tê-los por cá pela terceira vez no curto espaço de três meses é um verdadeiro luxo. Depois de no passado mês de julho terem atuado em Vila do Conde e de no mês seguinte terem marcado presença em Vilar de Mouros, desceram agora até Lisboa para o início de uma tour europeia que serve de apresentação de “The Waiting Room”, o décimo álbum de originais, editado no início deste ano.
A banda formada em Nottingham conta já com 25 anos de carreira e da formação original permanecem o carismático vocalista Suart A. Staples, o guitarrista Neil Fraser e o teclista David Boulder, aos quais entretanto se juntaram o baixista Dan Mckinna (em 2007) e o baterista Earl Harvin (em 2009). Foi este quinteto que subiu ao palco do Teatro Tivoli numa noite quente de outubro para demonstrar que os ‘Sticks continuam a ser mestres na arte da contenção melancólica e a despertar prazeres simples por entre atmosferas nebulosas.
À beira dos 51 anos, envergando o usual cravo vermelho na lapela, o fleumático Stuart Staples parece desafiar a passagem do tempo. A sua voz continua inconfundivelmente sombria e densa, capaz de nos seduzir até com os frugais “thank you” que foi segredando entre músicas. Foi impossível não nos emocionarmos com a forma sentida e apaixonada como o vocalista se deixou envolver pela amargura das canções, como se as estivesse a interpretar pela primeira vez.
A entrada em palco fez-se ao som pré-gravado de Follow Me, suave instrumental que abre o novo álbum e que consiste numa versão do tema composto por Bronislau Kaper para a banda sonora do filme Revolta na Bounty de 1962. A ligação dos Tindersticks ao cinema já vem de longe (fruto da colaboração com a cineasta Claire Dennis) mas ganha agora novos contornos: a edição especial do novo disco inclui um DVD com onze curtas-metragens encomendadas a diversos realizadores para ilustrar cada uma das canções novas.
Porém, ao contrário do que sucedeu há escassos meses em Vila do Conde, os Tindersticks não atuaram em formato de filme-concerto. Sem distrações nem grandes efeitos cénicos, sem pausas nem bajulações entre canções, o foco esteve exclusivamente na performance dos cinco músicos. E nesse aspeto há que dizer que a máquina continua sóbria e coesa.
Staples e companhia são músicos da mais fina estampa mas, ainda assim, sentiu-se a falta de um suporte vocal feminino e de uma secção de sopros e cordas que os elevasse para um patamar mais orquestral, como em anteriores visitas. Foi muito provavelmente por essa razão que Help Yourself, um dos temas mais interessantes do novo álbum pela sua diversidade instrumental, tenha ficado fora do alinhamento do concerto.
Mas engana-se quem pense que os ‘Sticks não apostaram forte na apresentação do novo trabalho, uma vez que acabaram por tocá-lo praticamente na íntegra. A maior parte do público que encheu a sala lisboeta numa quarta-feira (enorme percentagem de casais como já se esperava, não girassem as canções do Tindersticks à volta de histórias de amor e desamor) não terá ficado muito agradado com a opção, mas nem por isso poupou na habitual dose de carinho.
Numa réplica perfeita da sequência inicial do novo disco, seguiram-se Second Chance Man e Were We Once Lovers?, temas que percorrem territórios do jazz e nos quais é percetível um carácter mais abstrato e exploratório, que de certa forma já se antecipava no último álbum “The Something Rain” (2012).
O ritmo (demasiado) calmo prosseguiu quando a banda revisitou temas mais antigos do seu vasto catálogo, através da sequência Sleepy Song, Medicine, Johnny Guitar (arrepiante versão de um tema da autoria de Peggy Lee nos anos 50, com Staples e Fraser usando guitarras acústicas) e She’s Gone. Os ânimos exaltaram-se com If You’re Looking for a Way Out que arrancou muitos aplausos, naquela que foi a segunda versão da noite. The Other Side of the World, resgatado ao álbum The Hungry Saw (2008), mostrou quão especialistas os Tindersticks são nas mudanças de ritmo, com Neil Fraser a puxar dos galões.
Após essa curta revisão da matéria, os ‘Sticks voltaram a centrar as atenções no seu mais recente trabalho. O primeiro single, Hey Lucinda, surgiu com uma guitarra mais robusta e com um curioso alternar do baterista e do teclista nos respetivos xilofones. Em jeito de banda sonora, fomos depois embalados pela sublime How He Entered, num belíssimo registo falado que sempre lhes deu bons frutos (como por exemplo nos êxitos My Sister e Chocolate).
The Waiting Room, o tema mais “despido” do novo álbum, foi um momento quase religioso ao vivo: apenas com espaço para a voz de Staples e para o órgão de David Boulder, iluminados por dois focos de luz… que perto do fim passariam a ser três, quando a música terminou calmamente ao som do high-hat cymbal de Earl Harvin. Seguiu-se um bonito instante contemplativo feito de piano e percussão, em que o instrumental Planting Holes criou espaço para We are Dreamers! Foi aí, já com a banda novamente completa em palco, que vimos finalmente Staples abandonar o tom suave e a levantar a voz no meio da distorção propositadamente criada.
As águas continuaram agitadas, primeiro com a guitarra inquietante de Neil Fraser em Show Me Everything (que desaguou ao som da bateria e do baixo, num arranjo diferente do registado no álbum The Something Rain) e depois com o melhor momento da noite, extraído da colheita de 2003: Say Goodbye to the City chegou pungente e intensa e deixou todos com a respiração suspensa, num verdadeiro espetáculo à parte dado pelo baterista Earl Harvey, a que só faltou o esplendor das trompetes usadas na versão de estúdio.
Após Stuart Staples ter confessado já ter a voz dorida, os Tindersticks preferiram fazer as despedidas de forma tranquila com A Night so Still, tendo regressado depois sob fortes aplausos e sorrisos cúmplices para um curto encore em registo acústico e noturno, no qual recuperaram a graciosa Sometimes it Hurts e a hipnotizante My Oblivion, ambas do álbum Waiting for the Moon.
Como eternos amantes, os Tindersticks provaram que estão para durar e nós ficámos de alma cheia, com vontade que a noite não acabasse. Na hora da despedida veio então à memória o título de um clássico maior (ausente do alinhamento) que há três anos proporcionou um momento inesquecível no Coliseu dos Recreios, com os ‘Sticks e a plateia batendo palmas em plena comunhão: “Can we start again?”.
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sexta-feira, 22 novembro 2024