Reportagem Tindersticks no Coliseu de Lisboa
O tempo passa a correr, mas não pelos Tindersticks. Nesta digressão de celebração de vinte anos de carreira, a banda apresentou-se perante um Coliseu muito despido (a menos de metade) em melhor forma que nunca, com nove músicos em palco e um alinhamento absolutamente certeiro, mostrando que depois de duas décadas e algumas mudanças no alinhamento da banda, tudo continua (felizmente) igual. Igual ou, talvez, até melhor.
Foram cerca de duas horas tocadas perante uma plateia claramente conhecedora e apaixonada, de uma faixa etária no geral acima dos trinta (muitas famílias, muitos casais), que recebeu com toda a devoção esperada (e um respeito pouco comum hoje em dia) uma banda que é regular nos nossos palcos já desde os anos 90, tendo já passado por todos os cantos do país. Este concerto em particular, no entanto, teve o distinto sabor de derradeira e definitiva representação da carreira da banda em palco, por inúmeras razões: a divisão em dois sets (já lá vamos), os nove músicos em palco rodeados de uma panóplia de instrumentos (secção de cordas e de sopros, teclado, vibrafone...) que deram a cada música os arranjos que esta merece, um alinhamento que passou por (quase) toda a carreira de duas décadas e, claro, Stuart Staples igual a si mesmo, com a sua voz tão distintamente arrepiante, na qual o tempo não exerce efeito.
O espectáculo, tal como já se disse, dividiu-se em dois sets distintos: o primeiro, de cerca de meia-hora, contemplou uns Tindersticks quase em acústico, com o vocalista sentado e as músicas a serem entregues de forma lenta e perfeita. O início (pontual, às nove em ponto), com a simples e delicada Tricklin’, e com um vocalista tão tímido como sempre a entrar em palco com um “Good evening” dito quase como se fosse segredado a alguém, foi feita à base de dois ou três acordes em teclado e a voz de Staples, sussurrante e arrepiante. Há sempre um choque inicial perante um início de concerto da banda, quando nos apercebemos simplesmente do quão boa é a voz do vocalista ao vivo, tão igual ao que é em disco, tão única no panorama de musical (nesse aspecto, nada mudou nestes vinte anos). Tricklin’, tão despida e cristalina, pareceu ter sido escolhida como faixa de abertura exactamente para esse efeito; e foi, tal como se esperava, mais que eficaz.
Nesta meia-hora as músicas tocadas foram todas elas calmas, lentas, mostrando bem o quão delicada e de cristal é a música da banda. Hushabye Mountain, apoiada por uma secção de cordas exemplar, foi talvez um dos momentos da noite, e Come Feel the Sun, uma das melhores músicas de The Hungry Saw (um dos discos mais recentes e menos amados do grupo, do qual esta música foi a única tocada), foi uma escolha mais que certeira de um grupo que sabe claramente escolher de um catálogo com vinte anos quais as músicas a tocar em palco. Foi meia-hora introspectiva, delicada, contemplativa e com aquele ambiente mágico que os Tindersticks criam tão bem em concerto. A Night So Still, de The Something Rain, revelou bem a devoção do publico: o disco é do ano passado, mas cada canção dele retirada foi recebida como se de um clássico se tratasse. Tento em conta que The Something Rain é provavelmente o melhor disco da banda nos últimos dez anos, e que lhes trouxe uma nova chama quando tudo começava a estagnar, isto mostra apenas que os presentes não são apenas fãs de longa data que vieram relembrar o passado; são, acima de tudo, fãs que acompanham ao milímetro a carreira duma banda que adoram, tendo perfeita noção dos deslizes que esta também teve. A banda mostrou-se também atente nesse aspecto: Falling Down a Mountain, disco de 2010 que é provavelmente o pior do grupo, ficou completamente fora do alinhamento.
Dancing, do clássico Curtains, deu fim ao curto set, com aquela que foi a primeira grande viagem ao passado da noite. As luzes acendem-se, há uma pausa de meia-hora, e quando o Coliseu volta a escurecer a banda regressa e Stuart, agora de pé, atira-se de imediato a um daqueles trunfos com os quais se começa um concerto: a energética Sometimes it Hurts, recebida com a emoção de quem a ouve desde que foi lançada (há dez anos atrás), e agora com uma excelente voz feminina em palco. E foi talvez aqui, com os arranjos mais cheios mas com a sensibilidade de sempre, que nos apercebemos do quão indicado é o Coliseu para o som da banda: a acústica esteve, ao longo de toda a noite, absolutamente perfeita.
Após este clássico, vem logo outro: If You’re Looking for a Way Out, música antiga da banda (e original dos Odyssey) que teve direito a novos arranjos em Across Sis Leap Years, disco deste ano onde o grupo re-interpretou (com sensibilidade e lealdade) alguns dos seus clássicos. Mais uma vez, a backup singer revelou-se exemplar, com a sua voz a acompanhar a de Staples na perfeição. E depois deste clássico, ainda outro, este simplesmente uma das maiores e mais geniais canções que a banda alguma vez fez: Another Night In. Bastou aquele início com o violino para o público entrar em quase histeria, e o que se seguiu foi um dos maiores momentos da noite, num daqueles crescendos que a banda faz tão bem. Sentem-se os arrepios na pele, as lágrimas nos olhos, e o silêncio devoto dum público que mal tocou nos telemóveis ao longo da noite (haverá maior sinal de devoção que este?). No final da música, os aplausos prolongaram-se, perante o sorriso envergonhado da banda e vocalista. Depois do primeiro set e do início do segundo, a noite já estava ganha.
A partir daí foi um desfilar exemplar e sem falhas de grandes canções, umas mais recentes e umas mais antigas (The Something Rain esteve bem representado na segunda parte com The Fire of Autumn, Medicine e Show Me Everything, todas elas magníficas, todas elas recebidas de braços abertos), todas elas certeiras e comoventes. Sem grandes pausas entre cada canção, com o vocalista com a sua tão característica timidez, foram momentos geniais uns atrás dos outros, com um público que, ocasionalmente, ia gritando pedidos a uma banda que lançou sorrisos mas não respondeu. “Esta foi a música número cinco”, diz Staples a certa altura, “E esta... é a música número seis”, termina, com o sorriso tímido de quem gosta muito de cantar mas não gosta de dar bajulação em palco. Atirou-se de seguida a Dying Slowly, clássico absoluto que conta com uma das melhores letras do vocalista, e viveu-se mais um momento perfeito, onde os aplausos mais uma vez se prolongaram.
O segundo set foi, como seria de esperar, com músicas mais “cheias” e dinâmicas, e a divisão acabou por resultar muitíssimo bem: se a primeira meia-hora da noite foi do mais instrospectivo que os Tindersticks alguma vez nos deram, a segunda parte (com cerca de hora-e-meia) manteve o intimismo (com os Tindersticks, é sempre assim) mas trouxe mais clássicos, mais músicas, e mais energia. Se a primeira parte foi de cristal, a segunda foi de diamante, mostrando os dois lados duma banda que, nesta digressão, soube apostar (e muito bem) num formato diferente. O público esteve rendido do início ao fim, recebendo com ovações cada canção dum alinhamento tão, mas tão bem escolhido: Sleepy Song, My Oblivion (a terminar o corpo principal do concerto, com um público em extase), Rented Rooms, City Sickness (de longe uma das mais aplaudidas)... canções que são todas elas do melhor que a banda alguma vez fez, recriadas em palco de forma imaculada.
Após My Oblivion (“Esta é a última música do nosso set e... decidimos acabar com esta”, diz Staples), a banda sai do palco, perante um público em ovação de pé, com um sorriso estampado no rosto; viesse o que viesse a seguir, dificilmente alguém sairia desiludido.
Mas o encore chegou, e levou a noite a outro nível (quando já se pensava que isso não era possível). Travelling Light entusiasmou um público que não se voltou a sentar, e Can We Start Again?, sem dúvida um dos maiores êxitos do grupo e uma das mais esperadas da noite, foi um daqueles momentos incríveis de perfeita sintonia entre palco e plateia, como só uma banda com tamanha devoção por cá conseguiria; e, mais uma vez, a voz feminina da banda revelou-se um trunfo, com uma ovação bem merecida.
E depois veio o final. Aquele final incrível com My Sister, canção longa e antiga (é de 93), amada pelos fanáticos mas provavelmente desconhecida pelos fãs mais casuais, uma pérola espectacular com um Staples em modo spoken-word, narrando uma história perante uma camada sonora em crescendo, tão entusiasmante quanto comovente. Talvez o maior momento da noite, numa das escolhas menos óbvias e, por isso, mais certeiras de todas as duas horas de concerto. A banda sai de palco com uma despedida breve mas sorridente, perante uma ovação enorme dum Coliseu onde no público ganhava vida a expressão “poucos mas bons”, e as luzes acendem-se pouco depois.
Os Tindersticks têm duas décadas, mas o tempo não passa por eles. E, se passa, são como o vinho: quanto mais velho, melhor. Numa noite de fé e devoção (como diriam uns outros britânicos que por cá também têm um grande culto), Staples e companhia transportaram para o palco, em dois formatos diferentes, canções incríveis de uma carreira incrível. Não há, efectivamente, falhas a apontar: alinhamento perfeito (a ausência mais óbvia terá sido, talvez, Tiny Tears, com a qual fecharam as duas anteriores passagens pelo Coliseu), público devoto e sempre de olhos no palco, e uma banda em grande, grande forma (como é que a voz dele continua assim...?). Nesta digressão de celebração de vinte anos de carreira, os Tindersticks fizeram isso: colocaram em palco duas décadas de grandes, grandes canções, interpretando-as da melhor forma possível (eram nove em palco, e isso ouvia-se), perante um público que os acompanha desde a primeira vez que passaram por terras lusitanas. O público foi pouco mas bom, e o concerto será certamente relembrado como um dos melhores que alguma vez deram (darão?) no nosso país. Tendo-os já visto anteriormente, esta noite mostrou-os melhores que nunca; se há três anos, naquela mesma sala, já tinham dado uma noite memorável, esta ainda mais memorável foi. Em palco, a música dos Tindersticks é ainda mais aquilo que já é em disco: inacreditavelmente bela.
Que voltem muitas mais vezes, que os fãs lá estarão para os receber; sejam muitos ou poucos. A banda pode já não ter a popularidade de outrora, e é até vítima do síndrome “banda que está sempre cá”, mas o culto continua vivo. E com concertos assim, como poderia ser de outra forma?
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sábado, 20 dezembro 2014