Reportagem Within Temptation no Coliseu de Lisboa
Noite negra e esgotada, no regresso do grupo de culto (ou talvez seja o género em si que é um culto por cá) ao país, após uma passagem pelo Porto. Muitas t-shirts negras, algumas quarentonas com rendas nos braços, piercings com mais de 10 centímetros (sem exageros), e um público com grande parte dele numa faixa etária acima dos 30 ou até dos 40, mostrando bem o tipo de público devoto que os Within Temptation têm por cá. Camarotes cheios, plateia cheia, público até no último andar do coliseu… já há algum tempo que os alfacinhas não enchiam assim a sua sala.
E a noite começou, exactamente, com gente de cá em palco. Os Kandia, que abriram a noite, conseguiram conquistar graças a um rock forte e energético, de músicas longas e bem pensadas. Foi uma escolha ideal para a noite, já que se encaixam na perfeição dentro do género da banda principal, e tiveram portanto à sua frente o público ideal. Uma vocalista com genuíno prazer no que fazia, um óptimo guitarrista (a guitarra é, aliás, o cerne de tudo), e um baterista e um baixista em sintonia perfeita. Uma primeira parte bem dada, que serviu na perfeição para aquecer as hostes. No futuro, talvez venhamos a ouvir falar mais deles.
Meia-hora depois, começava o espectáculo dos Within Temptation. E espectáculo é, de facto, a palavra certa. Um palco de dois andares, um ecrã gigante (de excelente qualidade) que ia projectando vídeos em cada música, um jogo de luz impressionante… um belo jogo audiovisual, bem pensado e executado, dado por uma banda que obviamente se preocupa com a imagem que projecta.
Preocupa-se, aliás, talvez demais. Começar o concerto com uma curta-metragem talvez não tenha sido a melhor ideia, tal como não o foi mostrar outra mais à frente. Percebe-se que queiram enquadrar e dar a mostrar o suposto conceito por trás do último álbum que agora apresentavam, The Unforgiving (do qual tocaram praticamente tudo), mas pedia-se mais subtileza. Afinal de contas, aquilo acabou por se reflectir como um golpe no ritmo do concerto, e, simplesmente, não acrescentou rigorosamente nada. E para quê tantos vídeos em cada canção, e todos eles por vezes tão pensados e, ao mesmo tempo, tão aleatórios? Porque é que haviam javalis em CGI que pareciam saídos do World of Warcraft? Porque é que aquele homem estava a lutar no ecrã com outro? E como é que de repente ele fica sem t-shirt e começa a chover (isso deve ter sido ideia da Sharon)? Todo o aparato visual destoou por vezes, distraindo até daquilo que era o que realmente interessava: a música. Não há problema nenhum em fazer um espectáculo assim, claro. Mas faltou uma fusão entre o que se ouvia e o que se via (algo, por exemplo, tão bem conseguido por Sufjan Stevens, que tocou naquela mesma sala este ano).
Claro que esta acabou por ser uma falha menor, que se ia revelando apenas em certos momentos (a sério, aqueles javalis…) no concerto de uma banda que, efectivamente, talvez se preocupe demasiado com mitologia celta/druida e afins (mas, lá está, deve ser também isso que os fãs adoram neles). O concerto, francamente bom do início ao fim, raramente deixou de ser imponente e impressionante, não tanto pelo aparato já mencionado, mas antes pelas canções em si, tão potentes e tão bem tocadas, sempre apoiadas pela bela voz de uma óptima vocalista. O último disco resulta francamente bem ao vivo, tal como o início com Shot in the Dark demonstrou logo. Energia pura, sob a forma de acima de tudo dois bons guitarristas, que preenchem todo o espaço do coliseu com ondas de ruído.
O alinhamento concentrou-se, portanto, maioritariamente no último disco, mas não faltaram também os êxitos do passado. "Ice Queen" foi recebida de braços no ar (muitos deles, mas mesmo muito, com telemóveis ou máquinas fotográficas na mão), tal como "The Howling", a apoteótica "Our Solemn Hour" (espectacular ao vivo) ou, claro, a inevitável "Memories" (momento lindíssimo). Sentia-se no ar a devoção pura de um público que estava ali a cantar as letras a altos berros, com os seus ídolos em palco. A banda parecia ela própria satisfeita, mesmo não estando particularmente comunicativa. Os sorrisos eram constantes, raramente se afastavam da berma do palco, e foi em particular nos encores, tocados com tanta diversão quanto alma, que se viu bem o quanto gostavam de ali estar. O público, esse, mostrou-se quase religioso do início ao fim.
Tinha bastado Memories, a terminar o corpo principal do alinhamento, para a noite estar ganha, mas os dois encores asseguraram-se de que a qualidade se mantinha lá em cima. "Deceiver of Fools", a fabulosa e muito aplaudida e cantada "Mother Earth", compuseram o primeiro, tendo ficado Stairway to the Skies (a última do mais recente disco) tido a honra de encerrar na perfeição uma noite que ficará provavelmente marcada na memória dos milhares de fãs que encheram o coliseu. No final, a banda faz uma vénia, e desce até do palco para cumprimentar os fãs; algo raro, hoje em dia.
Para os grandes fãs, deverá ter sido uma noite memorável, que irão relembrar por muito, muito tempo; para os curiosos (como eu), foi sem dúvida um belo concerto.
Há cultos que não se percebem, bandas que ao vivo são incompreensivelmente adoradas e aplaudidas.
Os Within Temptation, felizmente, defendem ao vivo muito bem o seu repertório, e dão um concerto impressionante e (e este é talvez o maior elogio) consistente, onde os bons momentos se vão sucedendo. Podemos não partilhar o culto… mas com concertos assim, este percebe-se.