Reportagem dEUS em Lisboa
Apesar de serem presença assídua em Portugal, os dEUS ainda nos conseguem surpreender. A “Soft Electic Tour” terminou na Aula Magna com um concerto completamente diferente do habitual: o alinhamento percorreu toda a discografia dos belgas mas focou-se nos temas mais calmos, numa intimidade ligada à corrente que deixou a Aula Magna rendida.
Por mais vezes que atuem em solo luso (ainda há poucos meses marcaram presença no Festival Super Bock, Super Rock) o público português parece não se cansar dos dEUS. Que o diga Aldo Struyf, que preparou o caminho para os seus compatriotas com um DJ set de bom gosto (entregando-nos aos sons tranquilos de Bill Callahan, Leonard Cohen e do inevitável Mark Lanegan, com quem atuou em Lisboa em março passado) mas demasiado longo, o que lhe valeu alguns assobios.
À passagem das dez horas, os dEUS finalmente desceram à terra e iniciaram a homilia com Wake Me Up Before I Sleep, perante um anfiteatro cheio de fiéis e onde apenas se vislumbravam algumas clareiras no topo. A banda indie rock formada em Antuérpia no início dos 90 é conhecida pelo seu intenso e alucinante turbilhão sonoro, que frequentemente descamba num verdadeiro caos orquestrado. Mas nesta digressão canções como Suds & Soda e Instant Street deram lugar a temas mais suaves, alguns dos quais nunca tinham sido tocados ao vivo.
Ao longo de uma hora e meia, os dEUS resgataram pequenas pérolas de cada um dos seus sete álbuns de originais, embora com maior incidência em “Pocket Revolution”, álbum editado há uma década. Um jogo de luzes muito discreto, uma plateia sentada e um conjunto de cadeiras altas para uma banda (nem sempre) sentada - estava criada a atmosfera perfeita para finalmente tirar partido do intimismo da Aula Magna, confessou-nos um cativante Tom Barman que esteve muito comunicativo, aproveitando as pausas para contar a história de algumas músicas. Os menos avisados ficaram a saber que o título Include Me Out foi inspirado numa fala de Fritz Lang, num filme com Brigitte Bardot. E que Barman escreveu Right as Rain em memória do pai e 7 Days, 7 Weeks para a sua irmã, embora esta não tenha ficado lá muito impressionada…
Quase a atingir os 44, o carismático vocalista desdobrou-se também pela guitarra elétrica e, pontualmente, pela guitarra acústica (como por exemplo na balada Eternal Woman). A voz é a de sempre… mas desta feita potenciada por um silêncio respeitoso que nos permitiu desfrutar de cada detalhe saído das suas cordas vocais. Porque desta vez Barman trocou o habitual apelo “Get the fuck up!” por um mais amigável “Please stay seated!”.
E por falar em versatilidade, é justo reconhecer o papel determinante de Klaas Janzoons (sobrevivente da formação original, tal como o próprio Barman), exímio na construção de uma atmosfera delicada e mágica a partir das teclas, do violino e até de um xilofone.
Constant Now (faixa do álbum Keep You Close, de 2011) sofreu uma metamorfose, agora numa versão mais simples e despojada, construída a partir do piano eletrónico. Sirens arrancou ruidosos aplausos e, logo de seguida, Secret Hell foi simplesmente sublime: começou de forma lenta até receber um abanão pelas mãos do baterista Stéphane Misseghers, para depois terminar em fading ao som do violino de Janzoons, agora no centro do palco, com os restantes membros formando um círculo à sua volta. Como uma verdadeira unidade.
Após Smokers Reflect, numa revisitação ao álbum Vantage Point (2008), houve tempo para mais um episódio protagonizado por Tom Barman. Quando o vocalista resolve avisar que o espetáculo está a chegar ao fim, prontamente alguém da plateia atira um “it’s a joke!”. Visivelmente bem-disposto, Barman respondeu na mesma moeda, sugerindo que a pessoa em causa não tomou a medicação...
The Magic Hour surgiu oportunamente à passagem de uma hora de concerto, para nos lembrar que cada momento foi mágico, feito de partilha e comoção. Felizmente, a aconchegante Nothing Really Ends, ao ritmo lúdico de um xilofone, fez jus ao nome e foi mesmo uma falsa despedida.
O encore não demorou a chegar e trouxe mais um novo arranjo: mais frágil do que nunca, Bad Timing desenrolou-se lentamente, camada sobre camada. Primeiro com Barman sozinho na voz e guitarra acústica, depois acompanhado pela guitarra elétrica de Mauro Pawlowski, mais tarde pelo piano de Janzoons e, finalmente, pelo baixo de Alan Gevaert e pela cadência certeira de Misseghers.
Os primeiros acordes de Serpentine arrancaram imediatamente um eufórico “Whoo!” da plateia, não estivéssemos perante um dos temas mais reclamados pelos presentes. No final dessa canção que nos fez recuar a 1996 (álbum “In a Bar, Under the Sea”), a banda abandonou o palco, não sem que antes Barman tivesse desafiado os presentes para prosseguirem a noite com a banda, algures no Cais do Sodré.
Mas antes disso o público lisboeta exigiu um novo encore e em troca recebeu Dream Sequence #1 como última prenda natalícia. A faixa que também encerra o álbum The Ideal Crash (1999) serviu de descompressão, com a banda finalmente a libertar-se das amarras. Foi, sem dúvida, o momento que mais se aproximou de um concerto habitual dos dEUS, numa cacofonia feita de guitarras rasgadas, sintetizador a rodos e bateria pesada. Barman apresentou os membros da banda e despediu-se com um “até já”.
Mais de 20 anos após o lançamento do seu primeiro álbum, os dEUS ofereceram a outra face e provaram que não são apenas uma banda para grandes festivais. É até provável que este seu lado mais desconhecido lhes tenha granjeado mais devotos. Porque a noite de sábado fez-se de pequenos detalhes e grandes momentos, num desfile de emoções que só uma sala como a Aula Magna permite absorver por inteiro. E não deixa de ser revelador constatar que canções como Easy, Little Arithmetics, Sister Dew, Disappointed in the Sun ou The End of Romance também teriam encaixado perfeitamente neste reportório.
O formato pode ter sido diferente do habitual mas os dEUS foram tudo aquilo que são: deuses maiores, imaculados e divinos.
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Organização:Everything is New
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segunda-feira, 21 dezembro 2015