Reportagem VOA 2019
Para os dias 4 e 5 de julho estavam programados, dois dias históricos para o metal em Portugal. Isto porque, a nível de dimensão das bandas, este era um dos cartazes mais fortes de que há memória em Portugal. Para a 10ª edição do VOA Fest - Heavy Rock Festival na estreia do evento em Lisboa - estavam marcadas as atuações (e estreias) de colossos como Slayer, Slipknot e Lamb of God; dos repetentes Gojira, Trivium, Arch Enemy e Rasgo, e dos estreantes Moonspell, While She Sleeps, Thormenthor, W.A.K.O. e Cane Hill. Um alinhamento de luxo que antevia dois dias memoráveis para milhares de fãs de música pesada.
Como é sabido o evento iria decorrer no Estádio do Restelo, mas uma falha de segurança na estrutura do palco, fez com que, a somente 24 horas da data marcada para o início dos espetáculos, a promotora mudasse o evento de local, para o único espaço indoor capaz de receber algo desta envergadura: a Altice Arena.
Esse grande percalço não impediu que esta edição fosse um grande sucesso, sendo que a honra de abertura do festival ficou a cargo dos Rasgo, que já haviam atuado na edição anterior, em 2017, ainda em Corroios. Quem assistiu a esse concerto há dois anos, ou principalmente o espetáculo no Coliseu dos Recreios (o primeiro da carreira da banda nacional, logo na abertura para os lendários Slayer) já não ficou surpreso com a atuação poderosa da banda de thrash metal nacional.
O grupo trouxe na bagagem o seu excelente álbum de estreia, com letras exclusivamente em português, o que facilita a memorização das mesmas, não sendo de admirar que álgum do público já cantasse os seus refrões. Espera-se agora por um novo álbum deste quinteto que já é um caso sério no metal nacional.
Os While She Sleeps tiveram um grande contratempo pouco antes da sua data em Portugal. O vocalista Lawrence "Loz" Taylor abandonou a tour por motivos pessoais e a banda teve de encontrar um vocalista substituto para os últimos concertos, inclusive o do VOA. Tal não constituiu um impedimento para que os While She Sleeps dessem uma boa amostra da sua sonoridade para um público maior do que aquele que assistiu ao concerto anterior em Portugal, também em Lisboa, mas no RCA Club.
A escolha do vocalista não podia ter sido melhor. Scott Kennedy, já conhecido pelo seu trabalho nos Bleed From Within, possui um registo vocal mais grave e poderoso, que até beneficiou o resultado final destes temas, ao vivo. Além do mais, o vocalista até se mostrou à vontade na sua função, ao ponto de ter feito crowd surfing.
Uma parte dos espectadores mostrou que conhecia algumas letras, provavelmente por ter ouvido os temas da banda antes do festival. Pela atuação enérgica terão ganho mais alguns fãs em Portugal.
A lendária banda portuguesa Thormenthor finalmente regressou aos palcos e logo num festival desta dimensão. O desconhecimento da grande maioria do público, principalmente dos mais novos, bem como o cartaz deste dia direcionado maioritariamente para sonoridades mais modernas, não ajudou a que esta atuação tivesse uma grande adesão. De todos os concertos do festival foi este o que teve, globalmente, uma reação mais fria por parte do público.
O death metal progressivo do grupo, que no final dos anos 80 e primeira metade dos anos 90, era vanguardista em Portugal, pode não ter o mesmo impacto hoje em dia. No entanto saúda-se o regresso da banda, esperando que seja para ficar, não só a nível de atividade ao vivo, mas também que esta lance um novo trabalho. Pelo menos a banda já deu uma pista de que provavelmente pretende fazê-lo, tendo lançado online, dois dias antes do festival, o tema "Large Hadron Collider", que aliás foi o primeiro a ser tocado no concerto da passada quinta-feira.
Os Trivium já haviam atuado como cabeças de cartaz no festival, há dois anos, com grande sucesso, e desta feita regressaram para duas posições abaixo no alinhamento, dada a dimensão das outras bandas deste dia.
Desta feita tocaram menos músicas, mas o concerto foi ainda mais memorável do que na ocasião anterior. Tão memorável que o frontman da banda, Matt Heafy, escreveu na sua página oficial no facebook, que este foi um dos melhores ou talvez o melhor concerto da carreira dos Trivium. Talvez tenha exagerado no calor do momento, mas que foi um extraordinário espetáculo, não há dúvida.
O quinteto mostrou como sempre uma grande competência técnica, o seu vocalista puxou bastante pelo público e os temas escolhidos foram acertados. Nesta vez não faltou aquele que é um dos grandes clássicos do grupo, "Pull Harder on the Strings of Your Martyr", e os temas do mais recente álbum resultam muito bem ao vivo.
A banda beneficiou de ter desta feita uma moldura humana bem maior a assistir, porque está talhada para eventos desta dimensão.
Um dos momentos mais improváveis, hilariantes e divertidos de que há memória num concerto de metal aconteceu a meio deste concerto. Os Trivium tocaram a cover de "Coração não tem idade (vou beijar)" de Toy, cantor popular setubalense, tendo este subido ao palco para cantar juntamente com a banda, uma memorável "Until the World Goes Cold" com o público a cantar ambas as músicas.
Os suecos Arch Enemy regressaram ao festival, sete anos depois, para mais uma forte atuação. Agora com a destemida Alissa White-Gluz e o ilustre Jeff Loomis (ex-Nevermore) no lugar dos ex-membros Angela Gossow e Christopher Amott (que já não tinha tocado no Vagos Open Air de 2012), a banda apresentou-se ainda mais oleada.
Metade dos temas tocados pertence aos seus dois últimos álbuns, que já contaram com a famosa vocalista de cabelo azul, o que pode não ter agradado alguns dos fãs dos trabalhos mais antigos. Claro que a banda não quer viver dos louros do passado e encontra-se noutra fase - embora musicalmente não tenha feito nada de substancialmente diferente, mas sentiram-se a falta de músicas como "We Will Rise", por exemplo.
Alissa é um verdadeiro animal de palco e dá gosto ver músicos do nível de Michael Amott e Jeff Loomis a tocar. Quem não viu o segundo guitarrista a tocar nos também reconhecidos Nevermore, terá de se contentar a vê-lo nos Arch Enemy o que já não é nada mau.
Goste-se ou não os Slipknot são uma enorme banda ao vivo, capaz de ofuscar o brilho de outras bandas que estejam presentes no mesmo cartaz. Um dos maiores nomes da música pesada das últimas décadas, capaz de trazer vários milhares de pessoas a um concerto, a banda norte-americana foi uma aposta por parte da organização do festival, tendo contribuindo decisivamente para o primeiro dia do festival ter lotação esgotada.
O grupo entrou a todo o gás com temas bem pesados como "People = Shit", "(sic)" e "Get This" tendo conquistado o público de imediato. Com o desfilar de vários temas dos primeiros dois álbuns, ao longo de todo o espetáculo, o mosh foi naturalmente uma constante. Porém, nem só de mosh foi feito este concerto. Em alto e bom som o público cantou a novíssima "Unsainted" - que será obrigatória nos futuros concertos da banda - e os hits "Before I Forget", "Psychosocial", "The Devil in I", "Vermilion" e "Duality". Para o encore ficaram guardadas "Spit It Out" e "Surfacing" que terminaram de forma fortíssima um dos melhores concertos do festival.
Depois de um primeiro dia fortíssimo a nível de atuações, cabia aos W.A.K.O. a responsabilidade de iniciar a programação musical deste segundo dia, que possuía um cartaz daqueles pouco vistos no nosso país.
A banda de Almeirim não se deixou intimidar, liderada por um Nuno Rodrigues sempre interventivo e que afirmou sentir-se honrado, por fazer parte deste cartaz histórico em Portugal. O momento alto do concerto foi durante o tema "Extispicium", que teve direito a um wall of death, a pedido do frontman da banda. Estavam abertas as hostilidades para mais este dia de concertos.
Na atuação dos norte-americanos Cane Hill também existiu um wall of death mas de resto a sua performance não acompanhou os níveis de intensidade e de qualidade quer dos W.A.K.O. quer das bandas que tocaram no dia anterior.
Se em álbum a sonoridade desta recente banda - que funde várias correntes do metal moderno - se mostra atrativa para os ouvintes alvo, ao vivo (pelo menos nesta ocasião) não convenceram e não terão feito muitos fãs na Altice Arena.
Se no primeiro dia tivemos a oportunidade de assistir a um concerto com músicas cantadas 100% em português (Rasgo), desta feita o nome maior do metal nacional, Moonspell, trouxe ao VOA um alinhamento maioritariamente cantado no nosso idioma. Tal se deveu não só a cinco temas tocados do último álbum, "1755", mas também ao já clássico "Em Nome do Medo"; ao refrão de "Alma Matter"; ao verso de "Full Moon Madness" e ao final de "Opium", que como é sabido, são quatro músicas obrigatórias nos concertos do grupo.
Os cartazes do VOA sempre tiveram como característica, a inclusão de nomes importantes e de grande qualidade do metal nacional, sendo que os Moonspell pertencem certamente a esse lote. A mais internacional banda portuguesa não sabe dar maus concertos e revelou-se uma valorosa adição ao alinhamento musical deste segundo dia.
Do último álbum destacou-se "Todos os Santos", um tema orelhudo que tem tudo para ficar nos alinhamentos futuros de Moonspell. No entanto, podiam ter sido tocados menos temas de "1755" e mais clássicos como "Night Eternal", "Everything Invaded" ou "Vampiria" para este concerto se tornar mais memorável. Porém compreende-se perfeitamente a opção dos Moonspell, por quererem dar a conhecer os seus temas mais recentes.
Absolutamente inesquecível foi o concerto dos Gojira. A banda francesa dos irmãos Duplantier beneficiou de um dos melhores sons de todo o festival - isto sem contar com um problema durante o tema "Silvera" - tendo arrancado para uma prestação intensa e demolidora. Tal foi a perfeição da prestação deste quarteto, que se encontra junto desde o início da carreira, que não houve quaisquer momentos aborrecidos, sendo que Joe Duplantier nem precisou de comunicar muito com o público para que este fosse conquistado.
A música falou por si neste espetáculo. Os riffs poderosíssimos - ainda mais do que em álbum! - uma bateria do outro mundo e uma sonoridade única que se reconhece por parte dos Gojira, deliciaram os fãs e conquistaram boa parte do restante público.
Num concerto destes não se podem falar em pontos altos, mas é de importante referir que não faltaram músicas do calibre de clássicos como "Backbone", "Flying Whales", "Vacuity", "L'Enfant Sauvage" e "Oroborus", entre outros, ou das mais recentes, mas igualmente relevantes "Silvera" e "Stranded".
Depois de outras magistrais atuações no VOA de 2014, na Sala Tejo da Altice Arena em 2015 e no Hard Club (Porto) em 2016, os Gojira superaram todas essas e podemos afirmar que estes estão (e são) verdadeiramente monstruosos em palco.
A fasquia estava extremamente alta, mas os Lamb of God souberam manter o nível deste segundo dia, com um concerto explosivo, bem superior ao do Optimus Alive de 2009. Há precisamente uma década atrás, a banda americana fez parte de outro grande cartaz de música pesada e dispôs de menos tempo para apresentar a sua música aos fãs portugueses. Essa atuação passou a voar e chegou a dar a sensação que a banda estava apenas a dar um concerto para cumprir calendário. 10 anos depois, a banda de redimiu-se com um conjunto maior de temas capaz de saciar os espectadores e uma energia que faltou na anterior passagem por cá.
Randy Blythe apresentou-se mais motivado e comunicativo do que antes, talvez por ser a última vez que os Lamb of God iam atuar com os Slayer, sendo que antes de "Laid to Rest" pediu ao público para gritar o nome da mítica banda de Tom Araya e Kerry King, e depois de andar pelo palco a pontapear coisas, dedicou essa famosa música à banda de thrash. O grande momento do concerto estava reservado para o fim, com o público a fazer um circle pit gigante a pedido de Blythe, durante a última música, nada mais nada menos do que a emblemática "Redneck".
A noite de concertos encontrava-se cada vez mais perto do seu término e já estava a ser em cheio! Faltava, porém, assistir à última performance, de uma das maiores e mais influentes bandas da história do metal. Os Slayer tinham a maior sala de espetáculos de Portugal cheia de público para assistir à sua despedida e seguramente deixaram grande parte dos seus fãs satisfeitos, sobretudo devido a um alinhamento de luxo, recheado de todos os clássicos obrigatórios, só ficando a faltar "Die by the Sword", que resulta sempre bem ao vivo.
Não é que os Slayer não tenham outros bons temas, mas aqueles que não podiam mesmo faltar foram apresentados nesta noite especial. Além dos temas chave da carreira da banda - nem vale a pena enumerar quais porque todos sabem - o quarteto reservou algumas surpresas.
"Born of Fire" e "Temptation", dois temas um pouco menos conhecidos de "Seasons in the Abyss"; "Gemini", música original presente no álbum de covers "Undisputed Attitude" e "Payback" do álbum que virou o milénio, "God Hate Us All", foram os extras deste concerto, bem como as mais recentes "Repentless", "World Painted Blood" e "Hate Worldwide". Um prato cheio para os fãs de Slayer que se puderam despedir convenientemente da sua banda de eleição.
Apesar do alinhamento de luxo e da intensidade com que sempre se entregam à execução dos seus temas, o som da Altice Arena não estava muito satisfatório neste concerto e a voz de Tom Araya aqui e ali soou algo cansada, o que é natural uma vez que este foi o último espetáculo da digressão europeia.
Bem melhor do que, por exemplo, o espetáculo no Super Bock Super Rock e talvez não tão memorável como a atuação anterior na Altice Arena ou do concerto no Coliseu dos Recreios, ainda assim este foi uma performance final extremamente positiva por parte de uma das melhores bandas de metal de todos os tempos. Obrigado aos Slayer pela música e pelos grandes momentos.
Para o próximo ano esperamos um VOA Heavy Rock Fest tão ou mais memorável do que este.
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quinta-feira, 11 julho 2019