Reportagem Kraftwerk no EDP CoolJazz 2019
Os lendários Kraftwerk encerraram com chave de ouro a 16.ª edição do EDP Cool Jazz, apresentando um irrepreensível espetáculo multimédia em 3D. Os pioneiros da música eletrónica desfilaram velhos clássicos, mas injetaram-lhes novo sangue. Quase 50 anos depois, continuam nostálgicos pelo futuro.
Há 16 anos que os Kraftwerk não editam temas novos, mas isso não é necessariamente uma desvantagem. A banda formada em 1970, em Düsseldorf, aproveitou a passagem do tempo para ir refinando as suas músicas. O conceito visual tridimensional que trouxeram neste regresso a Portugal também não é novo, mas vem sendo aperfeiçoado há uma década, inclusivamente quando nos visitaram em Lisboa e no Porto em 2015 e, dois anos depois, em Viana do Castelo.
Foi, portanto, um conjunto muito bem oleado que se apresentou no último dia de julho perante uma plateia entusiástica que encheu o Hipódromo Manuel Possolo, em Cascais. Dispostos lado a lado, ao comando dos respetivos sintetizadores e envergando fatos pretos com linhas refletoras, os quatro músicos apresentaram um espetáculo eficaz e meticuloso. Da formação original resta apenas Ralf Hütter que, quase a completar 73 anos, continua a dar voz (sintetizada) às letras telegráficas da banda, tendo sido o primeiro a entrar e o último a sair de cena - a expressão parece-nos particularmente adequada tendo em conta que, mais do que um concerto, assistimos a um filme com uma banda sonora tocada ao vivo.
Não é segredo: os Kraftwerk prosseguem uma linha artística em que a componente visual tem tanta ou mais importância do que a sua própria música. Como era expectável, a interação com a plateia praticamente não existiu. As atenções concentraram-se, por isso, nos efeitos visuais projetados na grande tela ao fundo do palco e nos dois ecrãs laterais. A tecnologia atualmente disponível permitiria que esses efeitos fossem mais inovadores, mas a opção da banda pelo “vintage” parece refletir uma louvável preocupação em respeitar a idade da sua música.
Potenciadas por óculos tridimensionais, sucessivas imagens retro futuristas foram entrando literalmente pelos nossos olhos adentro, contextualizando as diversas temáticas abordadas na discografia do conjunto alemão, que permanecem relevantes nos dias de hoje. “Computer World” alertou para o acesso indevido a dados pessoais, enquanto o ecrã gigante se encheu de caracteres numéricos e monitores de PC antigos. “Radioactivity” ilustrou a complexa relação entre a natureza e a tecnologia, com letras garrafais e símbolos assinalando desastres nucleares. A estreita relação entre o homem e a máquina foi suscitada em “The Man-Machine” e “The Robots” (com imagens dos elementos da banda vestidos com as famosas camisas vermelhas e gravatas pretas, utilizadas na capa do disco homónimo de 1978, que nesta noite foi tocado praticamente na íntegra) e em “The Model” (um dos momentos da noite, com imagens de arquivo de desfiles de moda sugerindo que até as manequins podem ser encaradas como máquinas).
O imaginário dos Kraftwerk sempre andou à volta da ideia de movimento (repetitivo) e da circulação de pessoas, informação e meios de transporte. “Tour de France” confrontou-nos com a dimensão humana da tecnologia, patente no esforço de ciclistas que tentavam ultrapassar os seus próprios limites. “Trans Europe Express” criou a utopia de um mundo sem fronteiras, numa viagem de comboio que terminou na estação Kling Klang, numa subtil alusão ao estúdio privado da banda. “Spacelab” levou-nos a bordo de uma nave espacial que aterrou no Hipódromo de Cascais. “Neon Lights” denunciou a sociedade consumista, refletida nas citadinas luzes de néon de hotéis e clubes noturnos. “Autobahn” (outro dos momentos marcantes da noite) transportou-nos pela autoestrada, ao volante de um Volkswagen Carocha (mais uma vez, a primazia do clássico, em detrimento da novidade).
As pausas entre músicas foram escassas, mas o público não lhes poupou aplausos. Contudo, nos dias que correm o maior reconhecimento do legado dos Kraftwerk vem dos seus próprios pares. Ao longo da noite não faltaram ocasiões para nos lembrarmos que a música destes alemães inspirou várias gerações de artistas, de diferentes géneros musicais. A sua influência está presente no universo marcadamente electro de bandas como os LCD Soundsystem, Daft Punk, Hot Chip e Glass Candy, mas também no indie-rock dos Arcade Fire, no pop rock dos Coldplay ou no synthpop dos New Order e dos Duran Duran. A lista de músicos influenciados pioneiros da eletrónica é interminável, mas vale a pena acrescentar o nome de David Bowie, que encontrou inspiração naquela música mecânica quando compôs a célebre “trilogia de Berlim”, no final dos anos 70.
À semelhança da gravação ao vivo “3-D The Catalogue”, disco lançado em 2017, algumas das suas músicas foram tocadas em jeito de medleys. Logo no arranque do concerto – que começou sob o signo do álbum “Computer World” (1981) - “Numbers” foi misturada com o tema “Computer World”, enquanto “It’s More Fun to Compute” foi mesclada com “Home Computer”. O disco “Tour de France Soundtracks” (2003) foi revisitado através de um extenso périplo que incluiu a sequência “Tour de France / “Prologue” / Etape1 / Chrono / Etape 2” e, mais tarde, “Aéro Dynamik”.
Para a despedida reservaram mais uma sequência: um trio de canções (“Boing Boom Tschak” / “Techno Pop” / Musique Non Stop”, resgatadas do álbum “Electric Café”, de 1986), que serviu para encerrar a noite em ambiente de pista de dança. Serviu também para aquilo que já é habitual: um a um, os elementos da banda foram abandonando o palco, não sem antes cada um se ter curvado numa vénia de agradecimento, abandonando a postura séria e robótica.
Afinal, os nossos homens-máquina são mais humanos do que imaginávamos…
-
terça-feira, 06 agosto 2019