Reportagem SonicBlast Moledo 2019
Mais um ano, mais um estouro de proporções sónicas no litoral norte do país. Na primeira edição do festival a esticar os tradicionais dois dias para três, o balanço é francamente positivo, mas até nos mais finos panos de seda surgem as mais negras manchas. Mas que fique bem claro: o Sonic Blast transformou Moledo, indiscutivelmente, na meca do rock em Portugal, e isso nem sequer é uma opinião, é um facto.
Mas, falaremos primeiro nos pontos negativos: as condições de campismo, além de não terem sido melhoradas, pioraram. A inexistência de luz no campismo e a as fracas condições de higiene no que toca às casas de banho (em particular a ausência de lavagem no segundo dia e a remoção feita à totalidade do equipamento no último dia) não nos parece digno de um festival com o percurso e, particularmente, o cartaz e o preço que apresenta. Outra falha muito discutida pelo recinto foi da total falta de resposta às condições atmosféricas, que apenas devido a uma intervenção satânica foi possível continuar o festival no seu primeiro dia, após uma longa pausa nos concertos durante a tarde.
Uff, já está. Agora que se deu vazão ao menos bom, iremos então ao que interessa. O Sonic Blast de 2019 foi palco de concertos magníficos e transcendentais, que ficarão durante muitos anos na memória colectiva de quem os presenciou.
Comecemos então pelo início: como habitual, uma mão cheia de propostas nacionais para aguçar o apetite de distorção e baladas de amor animaram o Paredão 476 e o já mítico Ruivo’s Bar. Destaque para o rock com trejeitos punk dos novatos mas acelerados Dumbowax (quem se lembra deles os dois andarem alegremente a distribuir stickers o ano passado pelo recinto? O Festivais de Verão lembra-se) e os Greengo, dupla de irmãos de peso, onde o uso do growling pesado e deambulações pesadamente psicadélicas é uma constante. Era pois com muita atitude que se combatia a chuva que se ia sentindo aqui e ali, com mais incidência durante a noite.
Alguma fé se mantinha para que quinta-feira, o primeiro dia do festival, apresentasse uma meteorologia mais favorável. Porém, a chuva e o vento decidiram comprar bilhete diário, e provocaram muitos estragos, nomeadamente no palco da piscina, obrigando a organização a mover todos os concertos para o recinto principal. Mas nem isso chegou, já que durante horas o palco esteve vazio, e a procura de abrigo durante a tarde foi objectivo principal: nunca a tenda de merchandise esteve tão concorrida, pois qualquer tecto servia de abrigo. Mas nem toda a gente ficou a perder: as suecas MaidaVale aproveitaram um maior palco (e, provavelmente, público) para espalhar classe, com a sua aproximação ao rock psicadélico recheada de momentos post-punk a marcarem a diferença. Além da excelente química entre elas, a presença delicada mas paralelamente assustadora de Matilda Roth é hipnotizante, acompanhando as suas vocalizações com passos de dança bem perturbadores à lá Ian Curtis.
Logo de seguida, os Minami Deutsch trouxeram para a mesa muito krautrock psicadélico, directamente de Tokyo. Num concerto bem menos pesado do que a “concorrência”, o ecletismo aplicado na repetição de sons faz com que a viagem seja confortável e segura. Seguiram-se mais tarde os nórdicos Devil and the Almighty Blues (seriam a primeira banda do palco principal), com um som mais tradicional, algures entre o blues rock e o stoner. Devemos admitir que o concerto passou-nos um pouco ao lado, porém, óptima presença em palco e muita competência.
O tempo ia, aqui e ali, fazendo pazes com o festival, mas não estava fácil aguentar a roupa molhada. Porém, os Lucifer fizeram o que puderam para aquecer o público. Também um pouco mais perto do rock e heavy metal mais clássico, a banda liderada pela alemã Johanna Sadonis espalhou classe pelo palco principal do Sonic. Com a curiosidade de ter um autêntico bastião do rock na bateria, Nicke Andersson (vocalista e guitarrista dos Hellacopters, e parte integrante de outros projectos como Entombed), foi um agradável festão roqueiro, perto daquela estética mais retrodark à lá anos 80 e 90, quase a obrigar a vestir uma peça de couro nos nossos corpos.
Mas os senhores que se seguiam ameaçavam fustigar os nossos pescoços: Monolord, com o seu arrastadíssimo doom metal, não temos vergonha nenhuma em admitir que não foi simples evitar um torcicolo. Um regresso a um festival onde, em 2017, deixaram uma marca bem positiva perante o público. E o mesmo se pode afirmar da presente prestação, onde as poucas palavras dirigidas ao público são facilmente desculpáveis pelo desfile de temas martelados directamente para os nossos ouvidos. O som dos suecos Monolord é viciante e leva-nos bem para longe, e o seu novo álbum “No Confort” continua a sua senda de excelentes registos de originais. Os riffs de guitarra cativam, o baixo derrete-nos e as vocalizações, a piscar o olho a bandas como Black Sabbath, complementam na perfeição o universo sujo e arrastado dos seus temas.
A esta hora já era impossível escapar à chuva que ia caindo aqui e ali, mas ainda tínhamos cravado na memória o brutal concerto de Earthless na edição anterior, e por isso mesmo não podíamos perder pitada do show dilacerante dos californianos. E, tal como ano passado, o trio californiano de São Diego reduziu a pó o público presente. A excelência técnica que Isaiah Mitchell exibe na condução da sua guitarra é sublime, a segurança a marcar passo do baixo inescapável de Mike Eginton e a precisão cirúrgica da bateria de Mario Rubalcaba são de uma categoria complicada de descrever. O cariz de jam que acompanham os seus concertos fazem com que tudo seja ainda mais interessante, vivendo bastante na expectativa de o que é que estes músicos conseguem e pretendem fazer ao vivo. É nesse misto de virtuosismo e imprevisibilidade que o som dos Earthless floresce, sendo, a título pessoal, uma das melhores experiências rock que alguém pode ter em tempos presentes.
E era altura de revisitar uma das bandas mais acarinhadas por estas andanças, os suecos Graveyard, que concerto a concerto foram conquistando os rockeiros portugueses um pouco por toda a parte. Existem dois lados bem distintos no som da banda liderada por Truls Mörck, um mais baladeiro e adocicado, outro mais rock’n roll. Felizmente, e porque assim se adequava mais ao contexto, a banda seguiu pela segunda via, não pedindo licença a ninguém e atirando-se de garras e dentes aos seus temas com maior potência crua. Uma passagem de alto gabarito, assim como muitas outras no passado, tais como no Milhões em Festa ou Reverence Valada (curiosamente, dois festivais que por agora se encontram extintos). Não tendo sido o concerto mais brilhante da banda em terras nacionais, com Graveyard temos sempre a garantia de um excelente concerto ao vivo, e este não foi excepção.
Numa noite que já ia longa e bem molhada, os ossos já tremiam quando os barcelenses Solar Corona, liderados pelo Zé Roberto (quem não conhece o Zé?) fecharam o palco, depois de um indeterminável sound check. As deambulações instrumentais ganham mais corpo com a recente adição de Julius Gabriel no saxofone e sintetizador, trazendo mais ao de cima o tom mais jazz experimental que a banda polvilha o seu stoner rock psicadélico. A tropa do Sonic Blast resistiu ao que viria a ser o seu dia mais castigador a nível meteorológico, e o espírito de positividade começou finalmente a chegar com o adeus à chuva.
Dia 2
O segundo dia apresentou-se sem chuva, mas ainda assim um pouco nublado. Devido aos estragos do dia anterior, os concertos do palco piscina seriam novamente realocados para o palco principal. Porém, este dia viria a sofrer por alterações no alinhamento de última hora, o que perturbou muitos festivaleiros que acabaram por perder o concerto que queriam devido à fraca comunicação dessa alteração por parte da organização.
Chegamos ao recinto pelas 17h00, porém, pareceu que fizemos uma autentica viagem o passado, mais precisamente para 1983, dados os traços de semelhança de Zig Zags com “Kill ‘Em All”, álbum de estreia dos Metallica. Nunca recusamos uma bela pratada de trash metal, e foi com muita energia que os Zig Zags animaram o já considerável público presente.
Só voltaríamos ao recinto para ver Kaleidobolt, trio da finlândia proficiente em colocar toda a energia rock nos nossos copos e fazer um belo dum brinde. Após um excelente concerto aquando da primeira parte dos Radio Moscow no Hard Club em 2017, estes meninos voltaram a fazer estragos com o seu heavy rock psicadélico. Para contrastar com o speed das músicas de Kaleidobolt, nada melhor que os Belzebong (recrutados para substituir My Sleeping Karma) em palco, para nos afagar as pernas com o seu ritmo bem doom metal. O quarteto oriundo da Polónia deu um belo recital, com imensas cabeças a abanar ao seu som como se de uma ventania se tratasse.
E quando todos esperavam Stoned Jesus, eis que surgem os retornados Orange Goblin no palco, liderados pelo carismático Ben Ward. Uma banda que dispensa apresentações, mais uma vez voltou a meter todos a dançar e a moshar, muito fruto da excelente comunicação e empatia demonstrada pelo amável gigante vocalista. Com tributos a Lemmy pelo meio, os Orange Goblin não deixam os seus créditos em mãos alheias e voltaram a dar um excelente concerto em Moledo, deixando toda a gente com um sorriso na cara.
Seguiam-se pois então Stoned Jesus, com o seu grande alcance de referências rock: eram, talvez, das bandas presentes no festival com menos medo de explorar terrenos mais...radio friendly, diremos nós. O que é de salutar, um certo desapego ao mesmo estilo sonoro, porém temos que admitir que preferimos os Stoned Jesus quando mais ligados à pureza da sua génese mais pesada.
E finalmente, a banda final do dia chegava: Dopethrone foi das bandas mais polarizantes de todo o festival, seja pelo peculiar duo de vocalizações (ambas no mesmo registo de grunhido agudo), sendo pela roupagem mais sludge e ruidosa (possivelmente a banda mais pesada do festival?). Quanto a nós...foi um concerto que não nos deixou grandes saudades, mas em conversa com fãs da banda canadiana, podemos constatar que foi um espectáculo que lhes encheu as medidas. Com as pernas arqueadas de tanto mexer, fomos finalmente repousar um pouco para o campismo, para recuperar de mais um dia fisicamente complicado.
Dia 3
E ao terceiro dia, finalmente algum sol, e com isso o regresso aos concertos na piscina. E a tarde passou-se bem, com muitos mergulhos ao som dos mais variados projectos, desde os espanhóis Cardiel, dueto eléctricos que não deu um minuto de descanso com as suas incursões stoner, punk e metal, ou Maggot Heart, mais imbuídos no espírito do rock alternativo dos anos 90, liderados pela carismática sueca Linnéa Olsson.
Mas havia muito mais música para vir. Infelizmente não chegamos ao recinto a tempo de Toundra, mas bem no ínicio de Sacri Monti. O som bem setentista dos californianos chegou para fazer um final de tarde tranquilo, mas sem nada de extraordinário a apontar. Na via inversa, Windhand, também americanos mas oriundos de Richmond, Virginia, deram um dos concertos do festival. O doom metal acariciado por vocalizações belas de Dorthia Cottrell. As projecções demoníacas e sacramentais encaixavam na perfeição com a estética e som mais espiritual e religioso do conjunto, sendo uma bela surpresa para quem não acompanha esta banda em actividade desde 2012. A rever num futuro próximo, esperemos nós.
E começava a chegar o final do festival, mas ainda com três concertos bem distintos entre si. Eyehategod carregavam a responsabilidade dos anos e influência no meio musical, já que datam de 1988 e ajudaram a definir o som de sludgecore. E é difícil ficar indiferente a um concerto deles, sejam porque mergulhamos a fundo no seu som decadente e doloroso, seja porque o rejeitamos e ficamos incomodados pelas vocalizações abrasivas e em tom de grito de Mike Williams. A presença de Mike Williams é desconcertante, com provocações e desafios constantes, mas também com emoções à flor da pele e, claramente, muito prazer por estar a actuar.
Porém, chegava um dos concertos mais aguardados de todo o festival: os Om, banda de São Francisco criada pelo baixista Al Cisneros e pelo baterista Chris Hakius dos Sleep, elevou-nos todos a um estado Zen, onde o seu doom metal ganhou propriedades de cantos antigos e perdidos no tempo. A técnica de execução é admirável, a presença distante mais imponente de Al Cisneros é suis generis, e a mistura de diferentes sons um pouco de todo o mundo, seja folk tradicional do médio oriente, dub ou, claro, stoner e psicadélico. Tudo isto tocado e sentido em jeito de comunhão com o público, onde os vai-e-vém de cabeça são a única forma possível de celebrar esta missa. Um concerto absolutamente irrepreensível, que certamente ficará no topo dos melhores de sempre do Sonic Blast.
Nunca seria tarefa fácil tocar depois de um concerto tão letárgico como foi o de Om, mas os Domkraft deram boa conta do recado, substituindo também os agora extintos Satan’s Satyrs. Bem menos agrestes que o projecto cancelado, fizeram uma boa despedida do festival ao som do seu doom, mostrando mais uma vez que a Suécia o país europeu no que toca à produção de talentos stoner, psicadélico e doom.
Um Sonic Blast abençoado pela chuva, onde a persistência do público e da organização veio a ser recompensada. Novamente um festival fantástico, mas cujas dores de crescimento já começam a ser inaceitáveis. Esperamos um próximo ano ainda mais brilhante, de preferência com menos chuva.
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quinta-feira, 22 agosto 2019