Reportagem Amplifest 2019
Finalmente aconteceu. Três anos volvidos, no passado sábado, dia 12, tivemos o renascimento do Amplifest. E o uso desta palavra não aparece por acaso, pois ao fim do segundo dia do festival, dava para sentir que esta edição teve algo de diferente das anteriores. Foi um festival maior, mais adulto, um audaz novo começo para o que se espera ser uma nova vida de Amplifest.
Nesta edição, o festival começou em toadas mais leves que o seu normal, pelo menos a nível dos concertos. Emma Ruth Rundle, apresentou-se em formato solo, para um dos concertos mais esperados do dia, a julgar pelo já grande número de pessoas na sala. Envolvida por um sample de chuva, a sua voz suave ditava confissões e melancolias, revestidas por riffs sombrios e distorcidos. Era uma folk negra, pesada e distinta, mas onde por vezes se sentiu a falta de acompanhamento da banda. Dava ideia de que as músicas podiam atingir novas texturas, novos éteres, tal como Emma Ruth Rundle, soltarem-se mais. Foi interessante, mas deu a ideia que podia ser ainda mais.
Em claro destaque no sábado, estiveram as sonoridades mais hardcore, através dos Birds in Row e dos Daughters. Os primeiros, foram uma bela surpresa, efectuando um concerto bastante interessante, e por sinal, dos mais enérgicos do festival, com constantes pulos, quer de membros, quer stage diving, berros constantes em plenos pulmões, como se a sua fúria tivesse de chegar a última pessoa da sala com a mesma urgência da primeira. Foi punk, no bom termo da palavra. Quantos aos Daughters, sucederam aos franceses não para manter o ritmo, mas para o aumentar, naquilo que foi o maior tornado do festival. Foi uma “coça” brutal, de digestão difícil, mas foi verdadeiramente épico aquilo que Alexis S.F. Marshall e companhia fizeram em palco. Entraram com uma atitude de “aqui mandamos nós” e esfregam isso na cara de todos, sem qualquer medo. Pelo contrário, fizeram-no com gosto durante todo o concerto. Alexis S.F.Marshall tornou-se o mais carismático dos vocalistas de todo festival, movendo-se com uma teatralidade autodestrutiva e carregada de um ódio que destruía tudo e todos até chegar a si mesmo, arranhando-se, puxando a sua pele, ferindo-se com o microfone até a haver sangue a correr na sua testa. Terminou de tronco nu e marcado pelo seu cinto depois de autopunições. Foi uma chapada na cara que marcou estes dois dias e possivelmente o resto do ano.
Já os Amenra, dividiram o destaque do dia, mas não se deixaram ficar para trás. Se depois do que aconteceu em Daughters ninguém pensaria ser capaz de ficar novamente estarrecido de tal maneira, enganou-se. Os belgas apresentaram o espetáculo mais ensurdecedor, intenso e visualmente criativo do festival. Não foi só um concerto, mas sim uma mostra de arte. Todo o espetáculo é pensado como uma exibição em palco. Seja através dos vídeos sombrios e melancólicos, ou pelas intensas luzes. Tudo isto eram complementos que reforçavam na perfeição a dor, a miséria e o desespero que saiam da boca de Colin H. Van Eeckhout, enquanto, prolongadamente, eramos “atropelados” pela potencia do Post-Metal e Sludge que a banda violentamente emanava. É definitivamente uma experiência poderosa e cativante, que dificilmente consegue deixar alguém indiferente.
Destaque ainda para a revelação Candura, duo lisboeta, que envolto numa gigantesca nuvem de fumo que mal deixava ver o palco, levaram-nos numa viagem pesadíssima, a rasgar os limites sonoros do drone, da eletrónica e do noise. Uma autêntica experiência sonora que como todas as experiências não agradou a todos, mas que a outros, como o nosso caso deixou-nos intrigados com a magnitude do concerto. Por outro lado, Author & Punisher foi competente, mas faltou-lhe mais peso ao som, queríamos uma porrada maior, ou pelo menos contávamos com uma maior, mas talvez a culpa seja ter ficado entre os Daughters e os Amenra.
Com esses dois concertos ainda na mente chegava o segundo dia, e as esperanças de um grande dia eram muitas. Após os clássicos e não menos importantes momentos que o festival dedica aos filmes e as talks, chegam os concertos. Os Inter Arma, com o seu Black-Metal bruto foram os primeiros ao subir ao palco. Marcados como um dos nomes mais empolgantes da atualidade, tardaram a confirmar essa ideia. Um concerto de início morno que foi conquistando aos poucos o nosso interesse. Praticamente com as mesmas palavras, podemos descrever a performance dos Portrayal of Guilt, uma banda que esperávamos ser surpreendidos no festival, mas que acabou a ter um concerto algo frio, talvez o hardcore que vimos no dia anterior nos tenha deixado mal-habituados.
O primeiro grande momento do dia chegou pelos Pelican, eles que já não visitavam o nosso país desde 2007, era na altura apenas o terceiro concerto da Amplificasom enquanto promotora. Ao contrário das bandas anteriores este concerto agarrou-nos desde o início ao fim. Foi um concerto de uma banda rodada, muito coeso, intenso e bem delineado. O resultado foi uma viagem sonora em que era fácil fechar os olhos enquanto saboreávamos a intensidade dos riffs deste rock instrumental que caminha entre Post - Rock, Post - Metal e o Stoner.
O segundo grande momento chegou com os Touché Amoré, uma banda que dividiu a sala, muitos não gostaram e abandonaram relativamente cedo o concerto, outros apaixonadamente esticavam-se para cantar todas as letras da banda. Jeremy Bolm, ia de ponta a ponta do palco com uma entrega e energia contagiante, oferecendo o seu microfone aos muitos jovens que gritavam tal como ele intensamente durante todo o concerto. Celebrava-se o décimo aniversário de … To The Beat of a Dead Horse, mas o concerto foi muito para além disso. Celebrou-se a humildade, o amor e a dedicação àqueles que nos dão tudo. Seguia-se, os franceses Ingrina, a banda revelação do festival. Pouco conhecidos a partida, adorados no fim, são, junto com os Daughters, a banda que se sente mais urgência de rever. Portadores do Post-Metal mais bonito e delicado no festival, produziram a maior e mais planante viagem sonora do evento. Os Deafkids, a banda surpresa, seriam um nome a incluir nesta lista se não fosse o facto dos múltiplos concertos dados já este ano no nosso país, no entanto, eles não nos param de surpreender com o seu bizarro experimentalismo metal carregado de psicadelismo e tribalismo. São nesta altura possivelmente os maiores candidatos a carregar a bandeira que os Deafheaven carregaram na última década. Estes últimos foram os cabeças de cartaz do último dia do festival e mostraram em palco o porque de serem a banda mais importante e inovadora do Metal na atualidade. A sua combinação de Post-Rock, Shoegaze e Black-Metal ultrapassa as regras pré-estabelecidas de cada um dos géneros e materializa-se em algo totalmente distinto do que ouvimos em todo o festival. Nada do que aconteceu ali o vimos antes. Nem mesmo a forma como a banda ataca a performance. São quase uma banda não-metal em toda a sua génese, não fosse a postura do vocalista, e mesmo essa muitas vezes na sua teatralidade atinge quase a performance física de uma ópera. O resultado final é tão brutal como belo. É impressionante como algo tão majestoso é retirado de algo tão intenso. São uma banda especial e merecem todos os aplausos e sorrisos que tiveram.
Numa sétima edição, completamente esgotado, o Hardclub parecia “pequeno” para toda a intensa experiência deste fim de semana. Deu para sentir que há aqui bons alicerces para crescer caso o festival assim o deseje. O famoso aglomerado populacional que as vezes se torna um “problema” foi ultrapassado com distinção, o espaço continuava a respirar perfeitamente. As organizações perdoem-nos a repetição da palavra, estava mais adulta e com mais soluções. Notou-se um salto a nível de alcance do seu público. A “família” continuava lá, mas era fácil presenciar um maior número de estrangeiros, assim como muitos jovens, que se fez sentir sobretudo na procura pelos sons mais Punk e Hardcore do cartaz. Foi um bonito fim de semana. O Amplifest renasceu e a vontade de o visitar para o ano renovou-se. Até para o ano.
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segunda-feira, 28 outubro 2019