Reportagem Super Bock em Stock 2019
O Super Bock em Stock, o sobe e desce mais musical da Avenida da Liberdade, é um festival único. Aqui, não há palco ou recinto fixo, mas sim uma correria por algumas das mais emblemáticas salas de espetáculo da grande Lisboa, como o Coliseu dos Recreios ou o Teatro Tivoli, mas também outras que nunca se associariam a um espaço de concertos, com a Estação Ferroviária do Rossio a servir como maior exemplo. Aos anos que assim tem sido e há muito que os festivaleiros lhe tomaram o gosto. E lá está, 2019 não haveria de ser diferente.
Aliás, a nossa primeira paragem, deu-se mesmo num desses referidos espaços emblemáticos, o Teatro Tivoli. Para esta primeira paragem, Luís Severo foi convidado de honra e dificilmente arranjaríamos um melhor pontapé de saída, ou não fosse este o autor de um dos melhores cancioneiros portugueses que se tem ouvido nos últimos tempos.
Autor de uma dobradinha no local, ou não tivesse gravado o disco Pianinho neste mesmo festival há 2 anos, a noite de Severo fez-se em “Boa Companhia”, não só por acérrimos fãs que têm as letras do artista na ponta da língua, mas também pela adição de um violoncelo, contrabaixo e até mesmo uma harpa para dar (ainda) mais emoção às suas canções, como “Meu Amor” ou “Primavera”, isto depois de algumas versões acústicas de temas como “Amor e Verdade”. O embalo na alma que se sentiu ao longo de meia hora haveria de funcionar como combustível para o resto da noite.
E foi à boleia desse que se seguiu para o Coliseu dos Recreios, mais propriamente para Sinkane. Coube a Ahmed Gallab estrear a sala de maior renome do festival, mas a afluência da mesma era apenas uma miragem dos concertos que estariam para vir naquele mesmo sítio. Porém, o londrino não deixou que isso o afectasse, entregando-se de corpo e alma a todos os curiosos que alinharam em conhecer o seu tropical mundo psicadélico.
Dépaysé, novo disco de originais, mergulha pelo afrobeat e pelo reggae, o que só por si é meio caminho andado para suscitar o mexelhar dos corpos de todos aqueles que marcaram comparência no Coliseu dos Recreios. Concerto sólido e uma experiência agradável, sem dúvida, mas mesmo assim, sentiu-se que ficou a faltar algo.
O Super Bock em Stock, assim como o (agora) extinto Vodafone Mexefest, sempre tiveram uma ligação intrínseca à descoberta de novos e inquietantes artistas. Para esta edição, difícil será argumentar que um dos grandes vencedores foram os MEUTE.
O super grupo alemão - e por super quer-se dizer extenso - é uma trupe de músicos de orquestra que preferem pegar nas inúmeras possibilidades dos seus instrumentos e dar-lhe um toque mais mundano. Sintetizadamente, as trompetes, os saxofones ou a percussão tipicamente orquestriana ganham uma abordagem bem mais festiva e dançável; não é música electrónica, mas o efeito vibrante é praticamente idêntico.
E vibrar foi aquilo que se fez pela Estação Ferroviária do Rossio, com cada novo tema a ser sempre acolhido num misto de curiosidade e animação, tal não era a festança alemã que por ali se vivia. Deduzimos, pelos ares de surpresa de muitos, que os nomes das canções não eram sabidas, mas uma versão de “You and Me” (Flume) levou meio mundo a dizer “olha, conheço esta” enquanto o outro apreciava como é que as potencialidades do universo dos sopros consegue reproduzir melodias electrónicas.
Michael Kiwanuka era o nome mestre desta edição do Super Bock em Stock. Porém, perdemo-nos de tantos amores por MEUTE que nós perdemos também nas horas. Erro crasso, muito crasso, ou não estivesse o Coliseu dos Recreios a rebentar pelas costuras.
Como consequência por dado desleixe, o único espaço que se encontrou foi no último anel superior da sala, onde a acústica não prima pela melhor. E perante tal cenário aproveitar as canções de Kiwanuka tornou-se tarefa árdua, com o passar de cada canção a manter uma impercetibilidade que não deveria ter ligar, especialmente quando essas transbordam brilho com mais brilho.
Visto que Kiwanuka impõe que a experiência dos seus concertos seja tida em todo o seu esplendor, aprendeu-se a lição de como o tempo aqui é cruzial e foi arejar-se por outras bandas. Pelo caminho, num dos confortáveis shuttles do festival, ouvia-se “Cold Little Heart”. Confessamos: doeu não ter lá estado.
Depois de subida Avenida até ao Teatro Tivoli, Jordan Mackampa já tocava para uma sala bem composta, ou não fosse um dos nomes que mais curiosidade suscitava no cartório do festival.
O jovem britânico apresentou-se sozinho em palco, mas não teve dificuldades em ocupá-lo no seu todo, algo surpreendente quando se tem em conta que as únicas armas que munia era uma guitarra, voz e um jogo de luzes simétrico capaz de projetar a simplicidade do reportório do jovem britânico, isto sem nunca ofuscar a verdadeira estrela da sala. E não é que bastou? A carga emocional em cada uma das canções que proferia faziam o público não só sentir a melancolia das mesmas, mas como também a emergir nas mensagens que lhes eram adjacentes; todos os temas de Mackampa eram belas histórias, e o Tivoli tornou-se numa sorridente criança para ouvi-las.
Já depois de Mackampa ter terminado, atravessou-se a rua para o próximo concerto da noite. Nilüfer Yanya tomou 2019 de assalto. O seu álbum de estreia, Miss Universe, tem sido fervorosamente apontado como um dos melhores de 2019, sendo previsível que acabe em algumas listas dos grandes de este ano. Para todos aqueles que não tiveram a oportunidade de a ver no NOS Primavera Sound, o Super Bock em Stock era a oportunidade perfeita, com particular bónus em a ter numa sala como o Cinema São Jorge.
Aconteceu a infelicidade, com muita pena nossa, de essa oportunidade nos ter sido privada pela equipa de segurança. Com lotação esgotada, a nossa entrada foi barrada por um segurança alheio ao acesso da imprensa a qualquer sala, independentemente da lotação do espaço. Batalhou-se para entrar, mas foi em vão. Uma pena que nos deixou tanto magoados como irritados.
Se o nome de Friendly Fires não estivesse acompanhado pelas palavras ‘DJ Set’, o final da primeira noite do Super Bock em Stock teria tudo terminar com chave de ouro. Infelizmente para os fãs de “Paris” ou “Skeleton Boy”, não houve qualquer repescagem de temas da banda. Edd Gibson foi o único Friendly Fires que apareceu por Lisboa e ofereceu um serão de techno capaz de tornar o Coliseu dos Recreios numa versão amplificada do piso inferior do Lux Frágil. Para todos aqueles que ainda tinham energia, dançar foi regra, mas para nós, a quem o cansaço já não dava para muito mais, acenámos bandeira branca e optámos pelo descanso.
O sábado, dia 23 de Novembro, ameaçava chuva ao longo de todo o horário do festival. Quis o destino que os deuses da música, isto se tal entidades existirem, fizessem um pacto com São Pedro e o mau tempo esteve a léguas da Avenida da Liberdade. Sorte a nossa, hein?
Tal como o dia anterior, optou-se por arrancar a nossa noite num registo calmo. Como tal, a primeira viagem fez-se rumo à Sala da Casa do Alentejo, onde Tainá nos aguardava. A jovem carioca tem causado burburinho nas redes sociais e até contou com uma moderada afluência naquela que, provavelmente, é a mais bonita sala da Super Bock em Stock.
A tenda idade de Tainá nota-se a léguas, basta ler as suas letras para perceber que muitas abordam problemáticas típicas da adolescência. Normalmente habituada a tocar acompanhada por banda, a jovem artista batalhou um pouco por encontrar a segurança e perder o meio de tocar para tanta gente - é o nervoso miudinho, perdoamos-lhe. Mas quando fez o click, soltou-se e mostrou o porquê de ser um sério nome a ter em conta, com “Sonhos” a encantar e a receber um singalong de volta.
Já com o principal cartão-de-visita de Tainá entregue, abandonámos sala e fomos para o autocarro. O autocarro não é uma carreira normal da Carris, mas sim um palco do festival, com uma banda a dar concerto em pleno andamento. Das melhores experiências deste festival, sem margem para dúvidas. Para a ocasião, os escoceses Sweaty Palms fizeram de motoristas e foi pé a fundo numa viagem cheia de garage rock e barafunda à mistura. Das poucas vezes em que um serviço da Carris recebe nota máxima.
Curtis Harding é já uma cara bem conhecida do público português. É ainda conhecido, ou neste caso chega mesmo a ser a sua imagem de marca, pelo turbilhão de funk, groove e soul que os seus concertos acatam.
Como não poderia deixar de ser o norte-americano repetiu dose e aterrou com estrondo pelo Coliseu dos Recreios. De guitarra endiabrada em punho, por onde se lançava por solos e rifss chorudos tipicamente rockeiros da década de 70, cheios de ginga e capazes de meter qualquer um a soltar o corpo e deixar-se ir por estes ritmos contagiantes.
“Infelizmente, hoje a minha voz não se encontra no seu melhor”, revelou Harding sensivelmente no início do concerto. Ninguém atribuiu esta confissão como uma desculpa casa a coisa não corresse mal, mas sim como uma prova de alguém em vê Portugal como uma casa e onde pode ser si próprio. Por nós, era arranjar-lhe já uma casa.
Na noite anterior, os MEUTE roubaram-nas todas as atenções e estavam bem posicionados para arrecadarem o prémio revelação do festival. Porém, demos de caras com Orville Peck e o Super Bock em Stock nunca mais foi o mesmo. Adjetivar a performance deste tipo como incrível não faria jus à magnitude daquilo que se passou pela Casa do Alentejo.
Este cowboy de máscara erótica e voz de Johnny Cash, que se fez acompanhar por uma banda vestida a rigor ao estilo faroeste, só precisou de cantar meia dúzia de versos para nos deixar presos e hipnotizados pelo potente e dominante vozeirão de Orville Peck. Pony, disco de estreia, foi um dos mais peculiares e interessantes trabalhos que se ouviu por 2019 e vê-lo ao vivo é uma toda uma nova experiência, muito por culpa da energia e vida que Peck dá às suas canções.
Pouco se sabe desta persona e menos ainda da sua identidade. Mesmo adotando uma persona de cowboy, a masculinidade tóxica não tem espaço na sombra do seu chapéu, sendo múltiplas as mensagens de apoio a outsiders e elogios à comunidade LGBTI ao longo da performance do artista. Infelizmente, e por muito que quiséssemos ficar até ao fim, o calor infernal que se sentia na esgotadíssima Sala do Alentejo levou a que tivéssemos que abandonar o barco e procurar frescura com urgência.
João Coelho não é apenas Slow J; é um dos melhores e mais mediáticos nomes do hip hop nacional. Depois do lançamento do single “Teu Eternamente”, canção marcada por um claro tom de despedida, muitos pensavam que o artista iria dar a sua carreira enquanto artista como terminada. Felizmente que assim não aconteceu, com o mais recente You Are Forgiven a dar início a um novo capítulo. E o Super Bock em Stock teve as honras de o ouvir ao vivo pela primeira vez.
Foi mesmo ao som das mais recentes canções de Slow J que a noite começou, feita com o arranque de “Também Sonhar”, sendo impressionante a forma como os seus fãs já as acolhem com a mesma efusividade de temas anteriores, exemplificado quando “Arte”, título forte e primeiro vestígio de The Art of Slowing Down, encontrou o sem caminho para palco. Aliás, foi neste preciso tema onde se deu consolidada a relação entre Slow J e o público, e João não iria largar da mão a enchente que o acarinhava no Coliseu dos Recreios.
Sozinho em palco, com a exceção dos convidados Papillon e da dupla Francis Dale e Nuno Cacho para “FAM” e “Lágrimas”, respectivamente, Slow J foi enorme só por si, preenchendo o mítico palmo com a naturalidade e entusiasmo que só os grandes artistas têm. E isto é porque João conquistou o seu lugar entre essas estrelas, alienando anos de esforço, dedicação e trabalho a um talento natural em escrever canções que tanto comovem como arrepiam.
Desse seu cancioneiro, muito foi aquilo que se ouviu – “Mea Culpa”, “Às Vezes”, “Serenata” e culminou na inevitável “Vida Boa” - numa noite que, pelo menos julgando-se pelos enormes sorrisos de orelha a orelha de Slow J, certamente lhe ficará para sempre na memória. “Queria dedicar este concerto ao meu avô, que morreu o ano passado, e ao meu filho, a quem dei o nome do meu avô”. Entre a chuva de palmas dos seus acérrimos fãs, tornou-se claro que numa noite dedicada tanto ao passado como ao futuro, Slow J é o artista do presente, do momento. E que bom é viver nestes tempos com ele.
No meio de tantos concertos a acontecerem em múltiplas salas, é natural que ocorram algumas sobreposições. E o Super Bock em Stock é conhecido por ter algumas bem dolorosas, e este não foi exceção, com Balthazar e Viagra Boys a tocarem ao mesmo tempo e em extremidades opostas. A decisão foi difícil, levando a que a menina bonita dos caracóis responsável por estas fotografias fosse para os primeiros enquanto este que vos escreve seguiu o seu amor pelo punk.
O NOS Primavera Sound deu-nos a conhecer os Viagra Boys e desde então que se contaram os dias para os ter novamente entre nós. Até que confessamos uma certa perplexidade em não ter a banda a tocar no Coliseu dos Recreios, mas foi na Estação Ferroviária do Rossio que a coisa se deu, naquilo que acabaria por se revelar como uma má decisão.
Infelizmente, aquilo que se teve em Lisboa foi uma mera sombra do estado caótico de desordem que se viveu pelo Porto: o som estava vergonhosamente baixo e imperceptível. Sebastian Murphy, carismático vocalista da banda, não demorou muito a atirar as culpas para cima da polícia; “se tocarmos mais alto, somos multados”, justificou. Já nós culpamos os hotéis das redondezas, mas pronto, o espectáculo teve que continuar e nesse aspecto, os Viagra Boys mais do que compensaram o prejuízo.
Feios, porcos e maus, os senhores de “Sports”, que haveria de ser entoada em plenos pulmões por muitos, marcam-nos pela sua boa disposição, mas é através do seu punk sujo que nos conquistam, com as canções do estreante Street Worms a serem autênticos tiros certeiros e a contarem com uma nova malabarice de Murphy, seja flexões em palco, cuspo pelo ar ou banhos de cerveja. Houve atitude punk para dar e vender. Pena não se conseguir dizer o mesmo sobre o som…
E foi na companhia dos Viagra Boys que as nossas pernas finalmente vacilaram de tanta correria que se fez. O sobe e desce da Avenida da Liberdade regressa para o ano nos dias 20 e 21 de Novembro. Lá estaremos.
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segunda-feira, 02 dezembro 2019