Reportagem TOCA na Baixa
O TOCA na Baixa, evento dedicado à promoção de valores emergentes (e não só) da música portuguesa, invadiu o Hard Club no rescaldo da época natalícia para proporcionar música e diversão num delicioso ambiente intimista e imbuído de um notável espírito de apoio à causa- essa expressão exageradamente romântica mas que aqui, neste contexto de partilha e humilde divulgação artística, faz sentido ser usada.
O primeiro dia foi encabeçado pelos Homem Mau, mas, pelo menos para nós, a noite pertenceu, a nível musical, aos Rei Bruxo. É certo que este tipo de afirmações vivem sempre de uma natureza subjetiva e que nem tudo aqui foi perfeito, mas houve algo na atuação do coletivo- que conta nas suas fileiras com músicos experimentes e com créditos firmados, incluindo o sempre atarefado Marcelo Aires- que nos fez acreditar no seu potencial, numa grandeza que neles reside e que apenas precisa de tempo para que seja efetivamente atingida. Situam-se no campo do rock, particularmente naquele rock denso, pesado e de forte inspiração nos anos 90- muitos dos riffs aqui evocavam o legado dos Tool de antigamente-, mas é evidente que querem ir mais longe e explorar novas possibilidades criativas sem abandonar o universo ao qual escolheram pertencer- pense-se aqui, conceptualmente e talvez nem tanto a nível sonoro, nuns Faith no More, exemplo claro de uma banda rock que sempre soube eficazmente ser muito mais do que isso- e é essa ambição, essa leve mas louvável ousadia, que os torna tão excitantess, tão sedutores, tão promissores. Ainda que haja arestas a limar, essencialmente por nem todas as composições estarem no mesmo nível, existe aqui muito para gostar e que nos leva a expressar este merecido entusiasmo: riffs intensos, energia em palco, algumas passagens instrumentais verdadeiramente brilhantes e a intrigante presença da vocalista Sofia Fernandes - uma das principais fontes responsáveis pela faceta mais aventureira e arrojada de que falávamos acima. Tal não é de estranhar, sobretudo para os mais atentos que certamente a reconhecem do projeto Dullmea, alter-ego que a jovem artista usa para mergulhar num maravilhoso experimentalismo simultaneamente contemplativo e desafiante. Contudo, ao olhar para ela em palco com os Rei Bruxo sentimos que este mundo do rock, inevitavelmente associado a um conceito de irreverência, de rebeldia, ainda é algo novo para alguém com formação clássica enquanto violinista, alguém que mesmo quando se lançou para um universo de livre exploração sonora, o fez a partir de um lugar de conforto e introspeção, totalmente distante da atitude musicalmente selvagem deste projeto onde agora se encontra. Claro que é interessante observar esse contraste- verdadeiro “casamento” de ideias e personalidades-, mas perguntamo-nos se isso, de certa forma, não lhes custa alguma da coesão que tanto desejamos que conquistem, apesar de constituir também o elemento que os separa de tantos outros projetos. No fundo, o que temos aqui é um grupo que ainda se está a encontrar e a aperfeiçoar a sua fórmula- dores de crescimento perfeitamente naturais que com o tempo passarão, assim o esperamos ou, melhor, assim o sabemos… mesmo nesta fase (relativamente) inicial, mostraram que estão aqui para ficar; acreditamos plenamente neles.
Seguiu-se Daniel Catarino, que este ano lançou um belo disco intitulado Sangue Quente Sangue Frio. O cantautor alentejano fez-se acompanhar de Manuel Molarinho (Baleia Baleia Baleia, O Manipulador) no baixo e “Xinês” na bateria, proporcionando uma bonita celebração de uma ideia, utopia, se quiserem, do folclore português – pense-se em Virgem Suta ou Anaquim-, uma espécie de celebração do espirito lusitano divertida e honesta sem cair em desnecessárias manifestações de nacionalismo exacerbado, e que se revestiu do agradável toque “quente” (forma eficaz de combater o frio desconfortável que se sentia lá fora) de um rock bem rasgado mas com elegância blues. Muito satisfatório, melodicamente dinâmico, recheado de uma genuinidade contagiante e de uma classe louvável. Pena que o público tenha estado algo parado, pois uma participação mais ativa teria certamente enriquecido a atuação.
Esta edição do Toca foi também marcada por dois regressos aos palcos: o dos Homem Mau, logo no primeiro dia, e o dos Slow Motion Beer Walk, a fechar o segundo. Os primeiros escreveram importantes capítulos da história moderna do rock portuense no início da década passada- recordemos, por exemplo, os concertos ao lado de bandas como O Bisonte (Davide Lobão, aliás, tocou com eles esta noite) -, sendo que aqui aproveitaram o convite, feito pela própria organização do evento, para recordar essa época ao mesmo tempo que mostraram não querer viver somente desse mesmo passado, decisão enfatizada pela inclusão, no alinhamento, de material novo. Entre a doce nostalgia- aqueles tempos que não voltam mas que a banda, e sobretudo grande parte do público que ali estava para a ver, viveram com uma paixão e intensidade agora gravadas nos arquivos do coração – e a vontade de criar um possível futuro risonho, os Homem Mau navegaram harmoniosamente pelos mares do seu rock alternativo que muito bebe ao post-rock (sem nunca abraçar completamente o estilo, mas a verdade é que as passagens exploratórias e atmosféricas remetem para esse mundo) para oferecer um concerto competente, descontraído e, acima de tudo, com feeling.
Quanto aos Slow Motion Beer Walk, poucos ensaios tiveram antes deste retorno que também assinalou os quinze anos de carreira do grupo, mas mal subiram ao palco brindaram-nos com uma enérgica e festiva dose de um rock pujante e de forte influência blues; estava lá tudo- a garra, que felizmente não se evaporou, uma forte presença feminina num papel assumido de forma exemplar pela vocalista Sofia Lopes… enfim, foi bom, francamente bom, na verdade. Acabou por ser igualmente o maior destaque deste segundo dia, que contou ainda com o concerto de estreia dos Happy Suns (bem promissores com uma pop delicada e bonita, por vezes a lembrar os ambientes majestosos e emotivos de uns First Breath After Coma, mas ainda muito verdes), e a prestação bem- humorada, mas infelizmente algo genérica musicalmente, dos TRAÇO.
Sim, é verdade que a qualidade das atuações variou- assim se esperava de um evento que apostou tanto em artistas novos como veteranos-, mas sentir no ar a palpável atmosfera de entusiasmo e de convívio que se viveu ao longo destes dois dias, assim como assistir a concertos como os de Rei Bruxo ou Daniel Catarino, entre outros, foi uma oportunidade formidável. Só por isso o TOCA merece todo o nosso apoio, e o vosso também… portanto toca (no pun intended) a sair de casa e a abandonar temporariamente as mais variadas redes sociais para que eventos assim possam continuar a existir.
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quarta-feira, 08 janeiro 2020