Reportagem O Salgado Faz Anos…FEST
O Salgado Faz Anos… FEST, por esta altura, já se afirmou como um evento imperdível no panorama nacional pelo ambiente de intensa celebração que ali se respira; afinal, para além de assinalar o aniversário do programador músical do espaço, Luís Salgado, comemora a vitalidade da música alternativa contemporânea, sobretudo (ainda que não só) aquela produzida em terras lusitanas.
Este ano, os Zen - nome incontornável da música portuense da década de 90 - foram o grande destaque e provaram estar ainda em forma, mas a verdade é que muito mais aconteceu ao longo de uma noite onde a chama da diversão parecia não se extinguir. Isso, aliás, é o que caracteriza este evento: há sempre coisas a acontecer, muitas vezes em simultâneo, e em cada canto avistamos um concerto e pessoas a dar tudo de modo a que a noite não morra, o que contribui para que se instale uma atmosfera realmente selvagem e festiva- sobretudo tendo em conta a quantidade de amigos e conhecidos que encontramos e com o qual alegremente convivemos.
Contudo, isso também origina um clima de confusão muito maior do que habitualmente se verifica no Maus Hábitos em eventos “normais”. Há muita gente - demais para um espaço desta dimensão - e a circulação torna-se, em determinados momentos, particularmente difícil. Isso não só é desagradável, como também ligeiramente irritante, mas se nos abstrairmos desses pormenores e nos concentrarmos exclusivamente nos aspeto bons, então o balanço é claramente positivo.
Nesse campo inclui-se, claro, a qualidade dos concertos. Ainda que a quantidade faça com que haja sobreposições que nos impedem de ver tudo o que gostaríamos, descobrem-se sempre autênticos tesouros que nos reconfortam a alma e nos fazem continuar a querer ser melómanos atentos às pérolas da cena nacional.
Uma dessas pérolas foi Joana Guerra, violoncelista que, no Palco Stockhausen, fez do seu instrumento uma poderosíssima plataforma de expressão emocional, arrepiando-nos, comovendo-nos e levando-nos a sonhar acordados numa fantasia que desejamos poder ser eterna para nela vivermos aconchegados. Assistir a um concerto desta senhora é uma experiência bela, intensa, deliciosamente catártica. Os sons que arranca do violoncelo despertam-nos as mais transparentes e cruas emoções, revelando não só uma instrumentista incrivelmente talentosa, como extremamente criativa no modo como “casa” eficazmente as influências do mundo clássico que explorou na sua formação com a liberdade do experimentalismo sem fronteiras. Esse lado mais exploratório esteve, de resto, em destaque nesta apresentação, em parte como forma de combater o ruído exterior que teimava em não parar e que acabou por afetar uma atuação onde se pedia um ambiente mais silencioso. Ainda assim, Joana Guerra contagiou todos aqueles que neste espaço intimista e acolhedor se deixaram iluminar pelo encanto da sua luz… a prova foram os merecidíssimos aplausos que recebeu quando esta esplêndida viagem chegou ao fim. Para quando a próxima?
E o que dizer da prestação absolutamente demolidora de Scúru Fitchádu, aqui a apresentar o disco Un Kuza Runhu, sucessor do EP com o qual se apresentou ao mundo em 2016? Misturando a fúria do punk e o caracter urbano do hip-hop com os sons exóticos do funaná de Cabo Verde, cria algo único e extraordinário, simultaneamente vanguardista mas tradicional, que ao vivo se revela verdadeiramente visceral e origina, como aqui se verificou, uma festa imparável onde corpos dançam de forma desenfreada ao som de malhas “sujas”, intensas, mas extremamente ricas e dinâmicas. Olhávamos à nossa volta e não víamos praticamente ninguém parado, apenas um mar de gente a saltar, a dançar ou a aderir ao mosh, manifestando alegria e entusiasmo como se este fosse o último concerto das suas vidas; se assim o fosse, contudo, não nos ocorreria uma melhor despedida. Uma atuação brutal, suada e super animada – até o Salgado participou a certa altura, no tema “Ken Ki Frâ”. Simplesmente sublime, e a prova de que Scúru Fitchádu é um dos mais talentosos, entusiasmantes e desafiantes artistas da atualidade, por muito que alguns não o compreendam.
Dentro da vasta oferta disponível, há que mencionar igualmente os concertos de NOOITO e Sara Pérsico, ambos no Palco Stockhausen- muito honestamente um dos espaços com uma das mais excitantes programações de todo o evento. Os primeiros, ou melhor, as primeiras já que falamos da união de duas mulheres – Angélica V. Salvi e Ece Canli- protagonizaram um dos mais arrojados e potentes concertos do festival. Apostando num confronto ente o angelical e o tenebroso – a harpa convive com maquinaria e vozes que soam ora misteriosas, ora sinistras-, mostraram ser um projeto de uma ambição louvável e uma criatividade soberba, mesmo que não tenham necessariamente agradado a todos os presentes – alguns, a certa altura, escolheram sair por, imaginamos nós, não aguentarem a ousadia desta proposta; os que ficaram, contudo, foram devidamente recompensados.
Quanto a Sara Pérsico, move-se pelos férteis campos da eletrónica experimental e complementa a receita sonora através do uso de projeções, o que resulta em algo verdadeiramente empolgante- insólito mas estranhamente íntimo e recheado da mais pura criatividade e vontade de quebrar barreiras. Um nome a ter em conta que esperamos – e que temos, na verdade – de rever urgentemente.
Se O Salgado Faz Anos é sinónimo de festa, então uma maneira apropriada de a iniciar é com uma prestação tão explosiva e divertida como aquela que O Gringo Sou Eu! proporcionou. Uma dose de adrenalina surreal feita à base da já conhecida fusão eletrónica-rap-baile-funk - no fundo, não há regras para além da celebração da vida e, especialmente, do momento- dar tudo é a palavra de ordem, e esta foi cumprida!
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sexta-feira, 31 janeiro 2020