Reportagem Um Ao Molhe 2020 - 08 Março
Foi em Aveiro que terminou mais uma edição do Um Ao Molhe, festival que percorre o país de Norte a Sul promovendo alguns dos artistas nacionais mais entusiasmantes da atualidade. Falamos em artistas e não em bandas numa escolha que nada tem a ver com preferências textuais, mas sim com rigor frásico: parte do que torna este evento tão especial é o facto de acolher somente projetos a solo, acabando assim por se destacar dos restantes no modo como enaltece a individualidade de cada um dos participantes.
Podemos dizer com toda a certeza que esta data foi bem especial, não só por ter colocado um ponto final em mais um capítulo desta aventura, mas também por o cartaz ter sido inteiramente feminino- uma bela maneira de celebrar o Dia Internacional da Mulher e, acima de tudo, a magia e vitalidade da arte por elas produzida. Pode até ser uma afirmação politicamente correta, mas recusamos fingir que não é a mais pura verdade quando temos perante nós exemplos tão convincentes como aqueles que observamos neste memorável final de tarde.
A primeira atuação foi a de Joana Guerra, violoncelista já anteriormente discutida nesta plataforma, mas que continua a surpreender-nos com o seu talento, o seu encanto e uma impressionante capacidade de fazer-nos sentir emoções fortes e cruas. É precisamente aí que reside a magia desta experiência: por muitos concertos dela que já tenhamos visto, acabamos sempre por deixar-nos seduzir (como se chegássemos sequer a combater a tentação) pelos sons magníficos que Joana arranca do seu violoncelo, esse objeto que nas suas mãos deixa de ser um mero instrumento para se tornar numa extensão de si mesma, quase como um espelho que reflete toda a luz que nela existe.
Contudo, mais do que apenas a qualidade da obra, o que também sobressai é o cuidado de Joana em adaptar-se tanto quanto pode aos vários locais que visita: se no Maus Hábitos, no passado mês de Janeiro, optou por seguir caminhos mais experimentais e arrojados, aqui decidiu enfatizar o lado mais melódico e clássico da sua personalidade artística. Claro que não deixou de haver exploração, é disso que se alimenta, mas foi o formato de “canção” que esteve em destaque, até pela presença bem regular da voz ao longo do espetáculo. Doce e aprazível, o elemento vocal engrandeceu ainda mais a fórmula e coexistiu muitíssimo bem com a componente instrumental, originando uma atuação eficaz, emocionalmente poderosa e surpreendentemente visual (mesmo sem qualquer tipo de suporte) na maneira como, ao fecharmos os olhos, a nossa mente conduzia-nos automaticamente a locais belos e poéticos. Uma “viagem” esplêndida que podia ter durado um pouco mais, mas onde saboreamos cada momento.
Visual foi também a atuação de Ana Deus, que para além de música serviu-se de imagens e poesia, sua e de grandes como Regina Guimarães e Mário Cesariny, para criar uma ambiciosa e empolgante proposta multidisciplinar que nos fez vê-la com outros olhos, expondo um lado da vocalista dos Três Tristes Tigres deliciosamente exploratório e dinâmico. De certa forma foi um espetáculo algo próximo daquilo que normalmente associamos a uma poetry slam, mas cujo caracter abrangente impede que a coloquemos efetivamente nessa categoria, ou em qualquer outra. Acima de tudo, isto foi um apaixonante exercício de criatividade sem barreiras, um cruzamento de diferentes mundos artísticos (até porque os sons que emanavam do palco e as imagens que passavam no ecrã estavam sincronizados, como se fossem um só) e um claro desejo da parte de Ana Deus em se reinventar e testar os limites da performance, aproximando-se assim, curiosamente, do tom mais experimental e “vanguardista” dos restantes nomes do cartaz. Muito bom, sem dúvida.
A matiné encerrou com Carincur, autora de uma sessão de eletrónica incrivelmente estranha e desafiante – tanto sonora como visualmente-, sendo que aqui a imagem ocupou um lugar de extrema importância (também na atuação de Ana Deus isso aconteceu, verdade seja dita, mas não a este nível), pelo que podemos olhar para esta apresentação mais como uma instalação artística do que um concerto propriamente dito- e não há nada de mal nisso.
O que é realmente lamentável, todavia, é olharmos à nossa volta e apercebermo-nos do quão vazia estava a sala; tendo em conta a louvável dedicação de Manuel Molarinho, que para além de expressar a sua criatividade em projetos como Baleia Baleia Baleia ou O Manipulador, organiza este evento por acreditar verdadeiramente no potencial da música portuguesa, por crer que esta deve ser apoiada para usufruir de um futuro saudável, acaba por ser desmotivador deparar-nos com um cenário tão desolador. Além disso, a sala onde tudo teve lugar, o Avenida Café-Concerto, beneficia de condições bastante satisfatórias - trata-se de um espaço à parte do restante café, amplo, agradável e com um PA de qualidade -, pelo que a única coisa que faltou foi mesmo uma maior adesão. Talvez estes tempos incertos que vivemos, onde o medo do coronavírus domina cada vez mais a realidade diária, expliquem parcialmente a fraca assistência, mas todos os envolvidos – artistas, espaço e organização- mereciam melhor. Seja como for, fica aqui o nosso mais sincero apoio ao Um ao Molhe, que esperemos honestamente que continue durante muito mais tempo… é que faz falta, mais do que muitos imaginam.
De notar que o evento teve lugar antes das medidas preventivas obrigarem ao cancelamento deste tipo de eventos.
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sexta-feira, 13 março 2020