Festival para Gente Sentada 2020
O Theatro Circo e a Ritmos deram, na semana que passou, um enorme grito de apoio à cultura. Não só eles, mas sim todos aqueles que se dirigiram ao Theatro nos dias 16, 17 e 18 deste mês. Um grito em uníssono, absolutamente necessário face a este silencio sepulcral que a cultura atravessa. Falo do Festival para Gente Sentada 2020, que este ano comemorou a sua quinta edição com Jorge Palma, Samuel Úria, Benjamim, OCENPSIEA, Labaq e Surma. Durante três dias, a belíssima sala do Theatro Circo em Braga encheu-se (o novo encher) para ouvir música… e boa música. Cumprindo todas as regras que – infelizmente - já conhecemos, os concertos começaram às 19h00 e acabaram por volta das 21h30. Três corajosas noites assim. Três oásis num deserto. Agradece-se à organização a coragem e a forma incriticável como o Festival se desenrolou. O presente texto compromete-se a tentar descrever de forma fidedigna a maravilha que tomou conta do Theatro Circo nesses dias.
O Festival para Gente Sentada abriu com os OCENPSIEA. Grupo de Jazz composto por quatro antigos estudantes do Conservatório de Braga. A pequena nota quanto à natural falta de experiência demonstrada nas tentativas de interação com o público por parte do baterista, não poderá, de forma alguma, ser mimicada no que toca à atuação do grupo - OCENPSIEA demonstraram enorme maturidade e qualidade na maneira como abriram o festival. Putos giros a tocar música gira, ocupam um espectro muito caraterístico da sua geração: há Jazztrónica, Lo-fi e, por vezes, umas sombras de Vaporwave. A bateria confiante e metalizada soa à dos Radiohead. OCENPSIEA apresentam, sobretudo, melancolia com pinta (cuja epítome se encontra no seu original “Mini Bae”). Ao contrário de grande parte da música frívola produzida pela sua geração, há aqui bom gosto e sofisticação. Eles, efetivamente, fazem música. Provaram serem merecedores desta oportunidade e de uma atenção redobrada quanto aos seus próximos passos.
Seguiu-se-lhes um dos maiores nomes vivo da música portuguesa, Jorge Palma. É engraçado como fico bloqueado quando tento escrever sobre Palma: a sua carreira é tal que quaisquer elogios que se lhe façam correm o risco de serem repetidos. Vamos, contudo, tentar fazê-lo. Após ter aberto o concerto com a “Passeio dos Prodígios”, é perante um Theatro Circo ainda envergonhado que Palma canta ao piano um dos seus maiores êxitos – “Frágil”. O público - talvez enfeitiçado pela música que ouvia, pois tamanha era a fragilidade das palmas que investia no acompanhar da canção – começa finalmente a desinibir-se. É incrível como, não obstante todos conhecermos a canção de cor, Palma ainda nos consegue surpreender na sua interpretação. Enfim, dons. Termina “Frágil” e cumprimenta a plateia, conquistando-a dizendo que “[hoje em dia] ter um concerto com público é um luxo”. Há luxos merecidos, Jorge. Ninguém lá estava por caridade, temos prazer em ouvi-lo. Segue-se “Jeremias, o Fora Da Lei” e, logo após, Gabriel Gomes (acordeão) e o seu filho Vicente juntam-se a Palma em palco. Nota-se em Palma – que, entretanto, rumou à guitarra - uma alegria diferente com a presença do filho em palco. A cumplicidade entre os dois é tanta que parece estarmos a assistir a um filme cliché em que pai e filho viajam de autocaravana pela Route 66, guitarreando à brava nos tempos livres. Palma fica ainda maior do que já é ao pé do Vicente, pois sentimo-lo feliz. Seguem-se “Maçã de Junho”, “Só” e “Dá-me lume”. Palma dirige-se novamente ao público, dando graças – com a sua voz paternal – “por estarmos vivos”. Até Palma, que carrega um certo spleen em muitas das suas canções, vê a vida como uma bênção (e muito temos a aprender com a grandiosidade disto). E assim, nesta onda de positividade existencial, entra “Deixa-me rir”, logo seguida pela “Estrela do Mar” - tocada ao piano com uma delicadeza cintilante. Ainda ao piano, Palma continua nos êxitos, já que são tantos – toca o “Bairro do Amor” e a “Canção de Lisboa”. Esta última – a minha preferida – contagia, em crescendo, uma sala outrora envergonhada. Agora, não só não está envergonhada, como está participativa: o público, nos seus lugares, acompanha Palma - tocando nos pianos imaginários que tem sobre o seu colo. Palma volta à guitarra para interpretar “Terra dos Sonhos” e “Encosta-te a mim”. Despede-se apressadamente do Theatro Circo, que se levanta para o ovacionar. Fá-lo de forma tão insistente que Palma, Vicente e Gabriel voltam para o encore. Entra com alongamentos e… uivos! O público retribui-os: está dado o mote para “Lobo Malvado” e “Voo Noturno”, tocadas a um ritmo acompanhado pelo movimento do cabelo grisalho e divertido de Gabriel Gomes. O público sabe qual falta. Palma sabe qual falta. Há um acordo tácito entre os dois. Surge, então, “A gente vai continuar”, que enlaça o concerto de Jorge Palma no Festival para Gente Sentada, deixando ao público uma mensagem de esperança perante o espinhoso contexto pandémico que este enfrenta.
O segundo dia do Festival para Gente Sentada abriu com o concerto de Surma. Este concerto, mais do que qualquer outro, foi uma performance. Performance essa que, visualmente – e apesar do ótimo jogo de luzes -, procurou a diferença e a estimulação do antiestético, deixando a sala desconfortável. Com sons que nos sugerem estarmos perdidos numa floresta, a música de Surma é, também ela, idiossincrática. Os tons doces e confortáveis das suas músicas – que lembram The XX – acabam, inevitavelmente, com sujidade e soluços de noise music. Não há uma procura pelo belo (à exceção das suas guitarras - as mais bonitas de todo o Festival), mas sim um “toca e foge” com este – como se nos quisesse mostrar que sabe identificá-lo e produzi-lo, mas que o rejeita. O padrão musical pós-moderno, antiestético, disruptivo e progressivamente sujo que Surma apresenta sugere que a sua arte é, sobretudo, um escape a algo. Sente-se que produz a música para expurgar algo, pois deliberada e progressivamente atenta à beleza que constrói nas músicas, como se de uma terapia se tratasse. Não me excita. A amargura que Surma apresenta na sua performance é, contudo, contrastante com a maneira híper dócil com que se dirigia - descalça e franzina – ao público durante o concerto, que a recebeu no Theatro Circo com palmas e sorrisos.
Surma deu lugar a Benjamim, com banda. O grupo sobe ao palco radiando uma aura texana, sexy e extremamente bem-disposta. A cada música enchem-nos os pulmões, a passo que Nuno Lucas – baixista – está a dar um show dentro do show, serpenteando os pés com uma jinga que invejaria muitos dançarinos profissionais. As baladas são calmas, sóbrias e ocupam bem o espaço do Theatro Circo. É o “Pop Analógico” a que se comprometem. Com António Vasconcelos Dias – teclista –, Vera Cruz – segunda voz - e Benjamim a assumirem a parte frontal do palco, consegue-se detetar uma cúmplice troca de sorrisos entre os restantes membros que se encontram atrás – há, aqui, de facto, uma vibe descontraída e divertida. Os três da frente trocam entre instrumentos, o que expressa a sua polivalência. Surge “Terra Firme” e o Theatro Circo dobra-se em “woooos”: é num palco com cores quentes (que - diga-se – assentam-lhe bem) que Benjamim entrega ao público a canção mais esperada da noite, concluída com um “Obrigado por resistirem connosco”. Segue-se a “Disparar”, cuja letra – conta-nos Benjamim – fora escrita de ressaca, tal como a de “Madrugada”. Pelos vistos também sofre da síndrome de híper criatividade aquando ressacado. Nuno Lucas vai dançando fenomenalmente, agora acompanhado por António Vasconcelos Dias. O THEATRO CIRCO ESTÁ EM FESTA. O clima vai progressivamente aquecendo e ficando cada vez mais groovy, com guitarradas e bateria paulatinamente mais ferozes. Benjamim vai demonstrado uma destreza enorme, alternando entre uma maré de instrumentos. Despedem-se, em festa, de um público sedento de mais, público esse que prontamente os resgatou para o encore (a culpa foi de Benjamim por os ter acordado). Vêm, dão nova festa, e deixam um pulmão de cultura a respirar na sala a principal do Theatro Circo. Que falta fazia. Obrigado por nos ajudarem a resistir, Benjamim.
O terceiro e último dia do Festival chegou com chuva. Labaq ficara responsável pela sua abertura. Calma, simpática e pacífica – ideal para um fim-de-tarde chuvoso de sexta-feira. Bem-disposta, a artista brasileira conquista o público quando neste se ouve um telemóvel a tocar, ao que responde “Eu espero!”. Lança um “fora Bolsonaro” no intuito de encontrar camaradas na plateia – missão cumprida. Com uma doçura e destreza na guitarra entre Maria Gadú e Caetano, Labaq é música para um Domingo de manhã arrastado na cama, sem ressaca e – de preferência – com companhia. As suas baladas doces e calmas embalaram um Theatro Circo cansado de trabalhar a semana toda.
Seguiu-se-lhe Samuel Úria, cabeça de cartaz do dia. Este entra bem vestido, kitsch e com cores festivas. Munido de umas maravilhosas patilhas miguelistas e um jogo de anca fenomenal, Samuel Úria acorda o Theatro Circo previamente embalado por Labaq com uma das suas novas - a eletrificante e epopeica “Fica aquém”. O bom sentido estético que a sua vestimenta apresenta começa a expressar-se também noutras áreas, afirmando ser injusto “não ter de pagar para ver a sala” – o Theatro Circo é, de facto, lindo. Úria vem trazendo baladas elétricas, com guitarradas grunge cheias de ferrugem – o público está eletrificado. Mantém-se nas “Canções do Pós-Guerra” agora pela mão de “Aos pós”, numa referência aos pós-modernos e à sua falta de telos. O seu groove é tanto que nos sentimos na obrigação de pedir desculpa a Nuno Lucas – baixista de Benjamim -; Samuel Úria venceu, oficialmente, o concurso de jinga do Festival para Gente Sentada 2020. Seguem-se “Guerra e Paz” e “Não arrastes o meu caixão” – eis a poeira Western no Theatro Circo. Samuel Úria dá-nos nova prova da sua inteligência e charme, proferindo “quando o consumo de cultura se torna num ato de coragem, o público passa, também, a ser merecedor de palmas”. Momento maior do festival. A plateia – merecidamente – ovaciona-o. Úria tem o Theatro Circo na palma da sua mão. E é sob esta conjuntura que começa “Carga de ombro”. Diz-nos Úria que esta é “legal”, logo após ter dado o seu ombro a todo o Theatro Circo de forma tão doce. O público canta as suas músicas como se tivesse cartilha. Está vivo o Theatro Circo. Obrigado Samuel pela gentileza e carinho que nos dás. O público dança o possível nas cadeiras, agora ao som de “É preciso que diminua” – Úria é do tamanho desta sala! Seguem-se “Contenção” e “Lenço Enxuto” – finalmente a plateia teve direito a ouvir uma das poesias mais bonitas escritas em português no Século XXI, poesia essa que representa a luta dos homens sensíveis contra a masculinidade tóxica. O Theatro ouve, de forma hipnotizada, a sua interpretação - que começa em piano delicado e acaba em epopeia turbulenta. Úria “come a sala” de uma assentada só. Aproveitando a onda turbulenta, dá-se, agora, a “Fusão” – Úria mantém o groove alucinante: o Theatro é dele. Despede-se, sai de palco. O público não deixa, e ele capitula – naquela que foi a maior espera pelo encore de todo o festival. Numa possível mensagem ao público que não arredou pé do seu regresso, toca as últimas guitarradas de todo o festival com “Teimoso”. O público está absolutamente extasiado. Que show está Úria a dar. Samuel Úria fecha o Festival para Gente Sentada de 2020 com o palco em chamas musicais, absolutamente eletrificado, a falar para o público aos gritos como quem anuncia as últimas fichas para os carrinhos de choque. Úria assina o melhor concerto do festival, conquista o público e encerra o Festival para Gente Sentada com a maior ovação que esta edição viu. É o final do festival, com Úria a deixar a deitar fumo o palco e aqueles que o viram em cima dele. O público estava a sofrer por cultura, e Úria deu-lhes. Cultura precisa-se.
Obrigado ao Festival para Gente Sentada por ter sido um oásis neste deserto. Venham mais oásis - tantos que isto deixe de ser um deserto.
* Este texto foi escrito no dia em que foi anunciada a morte de Gastão Reis, baixista dos Zarco. O autor não quer deixar de se mostrar solidário com todos os seus amigos e família. A cultura também se perde, e a perda do Gastão simboliza uma perda significativa para a cultura contemporânea portuguesa.
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quarta-feira, 23 dezembro 2020