Zigurfest 2021
Foi em modo de luta e perseverança, a enfrentar ( mais) um ano atípico no que a festivais diz respeito, que o ZigurFest regressou ao seu formato habitual, ainda que com lotação reduzida, para oferecer uma maravilhosa plataforma de convívio com a música, as artes em geral e, claro está, a própria cidade de Lamego. Verdade seja dita, só quem já cá esteve entende bem a magia deste festival, um encanto que ultrapassa a mera oferta musical para se instalar no campo da ligação emocional, do intenso contato com algo puro e inesquecível que mil palavras não conseguem descrever, mas que o coração sente com toda a força do mundo. No fundo, estamos perante um evento que tanto funciona como uma montra do que melhor se faz dentro da música nacional contemporânea,( as propostas do “amanhã” apresentadas com o olhar atento do presente), como um retiro espiritual que nos permite desligar temporariamente da realidade e mergulhar num soberbo clima de exploração artística e espírito comunitário . É que no Zigur as barreiras entre artista e público são orgulhosamente derrubadas( ou nem sequer chegam a existir), ao ponto de muitas vezes os primeiros também se juntarem aos segundos, seja para apoiar bandas de amigos, seja para dialogar com o público em palestras ou para simplesmente voltar, em edições posteriores, ao local onde outrora foram felizes. E assim acontece porque aquilo que importa é essa partilha de experiências, essa bonita e genuína troca de ideias entre pessoas apaixonadas pela cultura que querem dinamizá-la, vê-la florescer, e que encontram aqui um lugar onde podem coletivamente celebrá-la.
Depois, claro, há os concertos, sendo exatamente aí que reside um dos maiores trunfos do Zigur: se por um lado a escolha por uma programação dedicada à música portuguesa faz com que possamos facilmente ver estes nomes noutras ocasiões, por outro o cenário onde essas mesmas atuações ocorrem é o que as torna tão únicas e especiais. Indo bem mais além do simples conceito de sala( embora não descurando o Teatro Ribeiro Conceição, essa acolhedora e majestosa casa onde toda esta aventura começou), o Zigur tem nas ruas da cidade o seu verdadeiro palco, sendo que toda a motivação que necessitamos para visitar estes espaços encontra-se precisamente na sensação de irmos assistir a algo efetivamente diferente e irrepetível, por muitas vezes que possamos já ter visto a banda ou artista em questão.
Na quarta-feira, o cenário escolhido foi o do esplêndido Castelo, onde a oferta arrancou com João Valinho e Marta Viana, unidos para um concerto/ performance intitulado CICLORAMA. Assumindo conscientemente um caráter mais experimental e desafiante, vive do interessante cruzamento entre a percussão exploratória de Valinho- ora uma fonte de ritmos, ora uma fábrica de ruídos - e a dança de Marta, quase como uma observação, ou um estudo, do movimento como reação imediata ao som que nos rodeia. A sua postura era notoriamente teatral , como se estivesse “enfeitiçada” pela percussão que a envolvia mas consciente do seu estado de transe , reagindo aos sons do “maestro” Valinho num registo que combinava sedução com delicadeza de forma sublime. O resultado foi uma proposta bem curiosa e criativa, mas que necessitava de um local mais adequado( talvez o Teatro Ribeiro Conceição) ou, pelo menos, de outro horário onde se pudesse jogar mais com as luzes e instalar assim um ambiente mais “noturno” e intimista.
Curiosamente, o ambiente revelou-se absolutamente perfeito para os dois concertos que se seguiram, a começar com a prestação dos SCOLARI, coletivo formado por Bruno Pereira( que a solo usa o nome “Aires”), António M. Silva e Luís Vicente, que também atuou no último dia com o seu magnífico trio( uma caraterística do cartaz deste ano que se estendeu a outros músicos, incluindo o já mencionado João Valinho). E o que faz então este coletivo? Bom, pode-se dizer que navega pelos universos do free jazz, noise e drone, diluindo-os até formar um só “organismo” e criando um manto infinito de sons capaz de punir e ao mesmo tempo aconchegar a alma de quem por eles se deixa conduzir. Tudo soa ruidoso mas também atmosférico, como se a música estivesse em permanente viagem, e o recinto ao ar livre por onde circulava, numa altura onde o vento começava a acariciar as faces e os cabelos dos espetadores, parecia refletir o sentimento de liberdade que emanava destas insólitas composições . E depois… Depois há o trompete de Luís Vicente, talvez o ingrediente mais delicioso desta fascinante receita, que em certas alturas parece habitar o seu próprio universo mas que noutras coaduna-se com a maquinaria que o acompanha e adquire um tom dissonante, por vezes quase esquizofrénico, como se “ berrasse “ algo de profundamente humano...
Após uma breve pausa para recarregar energias e jantar, regressamos, já de noite, para assistir à emotiva e belíssima atuação dessa pérola da música portuguesa que é Luís Pestana, autor do surpreendente “Rosa Pano”. Falávamos há pouco da importância do ambiente “certo” para cada espetáculo, e essa teoria foi indiscutivelmente provada nesta espantosa sessão musical que encerrou o primeiro dia de Zigur. A decoração era simples mas eficaz: luzes e pequenas lâmpadas que projetavam um deslumbrante cenário avermelhado/alaranjado encontravam-se estrategicamente colocadas no castelo que pairava, imponente, sobre Pestana. Tudo isto era posteriormente adornado pela eletrónica onírica e surrealista que este senhor eximiamente esculpe, criando uma paisagem contemplativa e envolvente, o produto de um sonho idílico que fizemos questão de experienciar acordados , sentindo cada emoção à flor da pele e lidando com as lágrimas de felicidade que ameaçavam invadir-nos o rosto. O próprio Castelo de Lamego, no meio da natureza relaxante e embelezado pela escuridão íntima da noite, casou perfeitamente com a sonoridade levemente bucólica de Pestana, em que se escutam sinos de igreja ou referências ao cante alentejano, e onde tudo soa doce, celestial, mas também abstrato e, por vezes , ligeiramente inquietante. Um dos mais poéticos, emocionantes e transcendentes concertos que o Zigur alguma vez acolheu; no nosso coração, a música ainda toca, vivendo confortavelmente numa teia de amor eterno.
Muito mais houve, no entanto, incluindo uma agradável conversa sobre o conceito de residência artística, realizada no Museu de Lamego, ao início da tarde, e que contou com a participação de Francisco Oliveira( dos Terebentina) , Ricardo Jacinto( OSSO e MEDUSA Unit), Mariana Simão( artista residente) e Inês Cardoso( mais conhecida como Carincur, este ano parte da organização do Zigur). Uma bela maneira de iniciar o festival e que permitiu usufruir do clima descontraído de convívio que o caracteriza. No campo das exposições, para além do trabalho de Mariana Simão, o destaque vai para a exibição de Francisca Sousa, na Casa do Artista, focada em questões de sexualidade e relações íntimas, que cativou pela criatividade arrojada mas com muita substância que a define.
+fotos em: https://v-miopia.blogspot.com/search?q=zigurfest
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quarta-feira, 29 dezembro 2021