MEO Kalorama 2022
Ouvia-se falar de um novo Festival de Verão em Lisboa. Com um cartaz de luxo, que incluía nomes como Nick Cave e Artick Monkeys, gerava um certo burburinho de expectativa. Houve quem comprasse com antecedência o passe para os 3 dias, a preço reduzido, sem saber muito bem o que esperar e se deparasse com a respetiva fatura em nome de “GIRAS & AUDACIOSAS”. A criatividade do nome deu, certamente, azo a umas quantas gargalhadas ou a um pequeno aperto no estômago dos mais conservadores, devido a receios de credibilidade. Sim, credibilidade! Porque isto de contabilidade e questões fiscais são coisas sérias e por isso consta que devem ser austeras e chatas. Entretanto a empresa promotora do evento mudou de designação para KALORAMA FESTIVAL, UNIPESSOAL, LDA
Receios infundados claro! O MEO Kalorama chegou e veio para ficar. Teve lugar no Parque da Bela Vista, onde também decorre o Festival Rock ‘n Rio, mas as semelhanças terminam por aí.
E porque maior não significa melhor, o MEO Kalorama apostou num espaço físico menor, mas que supriu as necessidades, evitou o merchandising em excesso e fugiu do conceito de parque de diversões. Três palcos: Palco MEO Kalorama, Palco Colina e Palco Futura, espaços de alimentação e bebida e casas de banho em número suficiente. Não foi necessário, salvo raras excepções, enfrentar filas imensas e houve até casas de banho não binárias numa atitude que gosto de apelidar como “very woke”. Não podemos deixar de registar com agrado as boas instalações de apoio ao staff e à press que foi tão bem recebida e até acarinhada pelo pessoal da Casa de Pedra.
Um festival com um cartaz suculento, cheio de pratos principais apetitosos e lanchinhos de fazer crescer água na boca.
1 de Setembro
O primeiro dia do Festival apresentou um alinhamento apetecível. The Chemical Brothers e Kraftwerk atraíram muita gente. Mesmo o facto de ser uma Quinta-feira e o antever de uma Sexta-feira com uma eventual ressaca de álcool ou de falta de sono não foram motivos suficientes para dissuadir os festivaleiros.
Os Krafwerk são uma banda de referência. Precursores no universo de sintetizadores e caixas de ritmos são, ainda hoje, uns ícones da discografia mundial. O público do MEO Kalorama reconheceu isso e agiu em conformidade. Rumou ao Palco Colina para os ver e ouvir. Fãs e curiosos aglutinaram-se à espera da banda. O concerto fez parte da digressão 3D Concert e como o nome anteviu, foram distribuídos óculos 3D para que o público pudesse disfrutar as imagens que foram projectadas. O quarteto alemão entrou em palco e avançou para aos seus sintetizadores. Interpretou os temas de um repertório que data já da década de 70 mas que continua a interessar e a ser celebrado.
Os Chemical Brothers eram os mais esperados da noite. Ouviam-se relatos de festivaleiros a assumir que vieram de propósito para os ver.
Durante uma hora o duo, Ed Simons e Tom Rowlands, puseram o Parque da Bela Vista a dançar. Temas como “Song to the Siren”, “MAH” ou “Hey Boy Hey Girl” foram celebrados com muita energia e variados movimentos de dança. Vimos lasers, fumo, imagens sincronizadas e vimos também os famosos robôs gigantes aparecer quando interpretaram “Under the Influence”. Todo o trabalho cénico foi apreciado pelo público. Criativos e competentes foram e serão sempre uma banda que dá gosto rever.
2 de Setembro
E ao segundo dia continuava a romaria ao parque da Bela Vista. Com uma afluência de cerca de 40 mil pessoas e lotação esgotada, sentia-se uma excitação no ar. Os cabeças de cartaz, Arctic Monkeys, foram, sem dúvida, os responsáveis de tamanha afluência. Público de todas as idades, incluindo muitos estrangeiros, entraram ordeiramente para o recinto. A banda atravessa gerações, pais e filhos são fãs de igual calibre e claro os eventuais turistas em Lisboa também aproveitaram para os ver ao vivo.
Apesar de Arctic Monkeys ter sido o prato principal o alinhamento contou também com outras iguarias.
The Legendary Tigerman conduziu-nos até ao pôr-do-sol com um concerto vibrante e energético. Paulo Furtado apresentou-se no Palco MEO Kalorama em formato de banda com Catarina Henriques na bateria e João Cabrita no saxofone. Contagiou-nos com o seu Rock’n Roll puro e duro. Era visível a satisfação na cara do público com tamanha explosão musical.
The Legendary Tigerman mostrou-se próximo do público, interagiu com este várias vezes e até fez crowdsurf. Referência para os temas: “Motorcycle Boy”, “Fix of Rock and Roll” e “21st Century Rock and Roll” que galvanizaram os festivaleiros presentes. E claro, a clássica “These Boots Are Made for Walking”, desta feita, cantada pela baterista Catarina Henriques.
Depois de uma pequena pausa para jantar foi a vez de rumar novamente ao palco MEO Kalorama para ver Blossoms. Havia já um mar de gente na plateia. A banda não é muito conhecida por terras lusitanas pelo que se adivinhava que aquele público estivesse a aguardar a banda seguinte, os Arctic Monkeys.
A banda britânica tem uma atitude essencialmente pop, com boas melodias e letras. Transporta-nos para os anos 80, profícuos em boa música desse género musical, ainda que se atreva de tempos a tempos a umas guitarradas mais indie rock.
Deram um concerto competente, tocaram bem e não desagradaram. Comentava-se na plateia que os Blossoms até eram bonzinhos. No entanto, foram apenas aquela banda simpática e genérica que permitiu um compasso de espera agradável para a banda seguinte.
Às 21h45 ouviram-se os primeiros acordes no Palco Colina. Este recebeu Róisín Murphy. Justificava-se uma escapadinha ao Palco Colina, umas dezenas de metros ali ao lado, mesmo correndo o risco de perder o lugar para ver Arctic Monkeys e espreitar a camaleónica artista.
Ela é uma verdadeira showwoman. A sua voz inconfundível torna impossível não reconhecê-la como parte dos extintos Moloko. Dona de uma carreira a solo desde 2005, Róisín Murphy evoluiu de simplesmente a metade dos Moloko para uma senhora de si só, com todo o talento, ritmo e criatividade que a caracterizam. Ela junta o Pop, o House e Disco explorando as suas variantes com muita mestria.
Excêntrica e colorida, vestiu e despiu acessórios ao longo do concerto, muitas lantejoulas, muito bling, bling e muitas perucas. Cantou ou melhor, encantou, com a sua voz grave e sexy e dançou de forma despreocupada. O público cantou e dançou com ela.
Referência para temas como “Murphy’s Law” e “Incapable” e para os êxitos de Moloko “The Time is Now” e “Sing It Back” em que todo o público a acompanhou no refrão.
E seguiu-se a banda mais aguardada do dia. No palco principal, MEO Kalorama, os Arctic Monkeys deram início ao seu concerto com o tema “Do I Wanna Know?”. O recinto estava esgotado e o público cantou as letras de todas as músicas em tom mais ou menos afinado consoante os dotes vocais de cada um.
Como já é habitual Alex Turner, o vocalista, não interage muito com o público. No entanto, pareceu ter reconhecido a calorosa recepção e levantou de braços em gesto de agradecimento e saudação no início do espetáculo.
Apesar da interação com o público ser uma mais-valia em qualquer espetáculo, uma banda com êxitos firmados como os Arctic Monkeys pode simplesmente desfilar os seus temas, estes percorrem o caminho etéreo até aos corações dos ouvintes. E assim foi, canção seguida da canção seguinte, todas em rota de colisão com os corações dos ouvintes.
Seguiu-se o tema “Brianstorm” a incendiar o público com toda a sua pujança. Esta canção teve direito a solo do baterista Matt Helders. Num alinhamento de luxo, seguiram-se também “Snap Out Of It” e “Crying Lightning”. “Teddy Picker” protagonizou um momento de energia desenfreada que fez o público levantar os pés do chão. Durante uma hora e meia os Arctic Monkeys galvanizaram e encantaram o público com todos os seus temas. Um concerto bem executado em que as canções por si só foram uma garantia de sucesso. O público acompanhou a banda em todas as canções a tal ponto que por vezes era difícil ouvir a banda em palco. Um concerto bem conseguido, bem mais entusiasmante do que o que vi em 2018 no NOS Alive.
Temas como “The View From The Afternoon”, “I Bet You Look Good on the Dancefloor” e “505” fizeram as delícias do público.
Apesar de estar previsto para Outubro o lançamento do seu novo álbum, “The Car”, a maioria do alinhamento do concerto centrou-se em temas dos álbuns anteriores. Excepção feita para “I Ain’t Quite Where I Think I Am”.
Lugar ainda a um encore onde foram tocados os temas: “One Point Perspective”, “Arabella” e “R U Mine?”. Escusado será dizer que quando Alex Turner cantou o último tema, “R U Mine?” toda a plateia se deve ter-se sentido impelida a gritar em plenos pulmões “Siiiimmmm!” (ou melhor “Yesss!” Não vão eles não perceber a palavra em português). Numa nota mais pessoal o mais-que-tudo perguntou-me também “R U Mine?” E eu, muito pouco hábil nestas coisas do coração, fiquei sem jeito e não respondi. Desculpa querido!
E a noite encerrou ao som de Bruno Pernadas e sua orquestra no Palco Futura. Valeu a pena esperar para apreciar o concerto deste colectivo e dançar harmoniosamente ao som da sua música rica e colorida.
3 de Setembro
Sentia-se uma atmosfera quase religiosa no ar. Será melhor chamar-lhe espiritual. Foi o dia de Nick Cave & The Bad Seeds. Este foi o cabeça de cartaz e o responsável por uma romaria de fãs, devotos antigos e recentes, de Nick Cave ao recinto.
É costume ver-se escrito nas críticas da especialidade que Nick Cave é um animal de palco. Este facto confirmou-se uma vez mais, em Lisboa.
Nick Cave e a sua entourage entraram em palco pelas 21h e deram um concerto de mais de 2 horas com uma cadência que incluiu momentos mais energéticos e momentos mais introspetivos. Interagiu com o público durante todo o concerto, foram frequentes as descidas das escadas que ligavam o palco às primeiras filas onde falou com o plateia e até dedicou o tema “ O Children” a Paula, uma fã que lhe confessou fazer anos nesse dia.
O alinhamento teve início com “Get Ready for Love”. Uma boa escolha para iniciar o espetáculo, acompanhada pelo coro a canção ganhou uma grandiosidade que nos encheu o peito. Começou aí uma experiência quase religiosa, sempre em crescendo. O tema seguinte “There She Goes, My Beautiful World” atingiu uma certa apoteose. Houve lugar a momentos mais serenos e intimistas nos quais Nick Cave tocou piano e cantou. Temas como “I Need You” e “Into My Arms” que dedicou a Beatriz Lebre, constituíram alguns deles. Houveram também momentos mais explosivos e viscerais como quando interpretou o tema “Tupelo”.
Nick Cave foi intenso, catártico e expressivo nos movimentos corporais, foi capaz de converter um qualquer não fã à sua espiritualidade.
O artista fez muitas referências e reverências à sua banda, The Bad Seeds, ao longo do concerto. Todas largamente merecidas. Foi um grande concerto repleto de emoções e êxtase.
Referência e reverência também para Ornatos Violeta e Peaches que deram muito bons concertos.
Os Ornatos Violeta apresentaram-se no Palco MEO Kalorama pelas 19h00. O público apressava-se na entrada do recinto para os ver e ouvir. Uma das bandas mais emblemáticas do panorama português, é sempre um privilégio poder revê-los.
Manuel Cruz, Elísio Donas, Kinorm, Nuno Prata e Peixe trouxeram um alinhamento assente no álbum “O Monstro Precisa de Amigos” datado de 1999. O entusiasmo era notório na banda e no público também. Manuel Cruz partilhou no início do espetáculo “É um prazer muito grande estar aqui. Obrigado a todos, um por um”. O concerto teve início com o tema “Coisas”, seguido de “Deixa Morrer”. As músicas desfilavam para gaudio do público. Pessoas de todas as idades, inclusive famílias inteiras, várias gerações comemoraram a boa música portuguesa e apreciaram estes ícones do pop-rock português.
Referência para os temas “Dia Mau”, que teve um engano e obrigou a banda a recomeçar, O.M.E.M. e “Ouvi Dizer” com o público a fechar os olhos e acompanhar o refrão com muito sentimento, bem como, “Capitão Romance” e “Chaga”.
Manuel Cruz tirou a t-shirt, ficou de tronco nu e alguém comentou “ o concerto está a correr bem, o Manuel já tirou a camisa”. Houve crowdsurf e muita interação com o público. O concerto terminou com “Pára-me agora” e nós ficámos com vontade de continuar ali a ouvi-los, mas Peaches iniciava as suas “hostilidades” no Palco Colina a umas dezenas de metros dali.
Peaches é irreverente, é feminista e é verdadeiramente punk. Ousada, ela é sexo e empoderamento feminino e LGBTQIA+. As letras são fantásticas, a batida e os ritmos são pulsantes e suculentos.
A artista subiu ao Palco Colina por volta das 20h, um concerto integrado na tour comemorativa do seu disco “The Teaches of Peaches”. Acompanhada de um baterista, uma guitarrista e bailarinas, proporcionou um espetáculo dinâmico com as bailarinas e a própria Peaches a despirem-se ao longo do concerto, e /ou usarem acessórios a ilustrar algumas das canções e até a simularem o coito em palco.
O alinhamento começou “Set It Off”, “Hot Rod” e “Cum Undun”. De atitude provocatória e francamente sexual, o seu espetáculo tem uma clara mensagem politica e social de empoderamento feminino, quebra de tabus e preservação das liberdades de escolhas das mulheres. Pôde ler-se no seu top: "Thank God for abortion", ela e as suas bailarinas apresentaram-se de topless enquanto o seu baterista tinha os mamilos tapados com fita adesiva em forma de cruz, num claro desafio a convenções mais puritanas sobre a nudez feminina, foram exemplos disso. Todos os acessórios remetem para vaginas e os seus movimentos corporais são sexuais e quase hard core .
Referência para os temas “Boys Wanna Be Her”, “Pussy Mask”, “Vaginoplasty” onde as bailarinas apareceram envergando uma espécie de grandes chapéus em forma de vagina. Referência também “Fuck The Pain Away” que é já considerado um verdadeiro hino. Tudo tão electrizante e verdadeiramente libertador!
No encerramento do último dia do Festival o público teve a oportunidade de se despedir a dançar ao som de Disclosure a partir da 00h45.
O Meo Kalorama regressa em 2023, entre 31 de Agosto e 2 de Setembro e nós prometemos estar lá.
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quinta-feira, 15 setembro 2022