EDP Vilar de Mouros 2022
Vilar de Mouros é, além do mais antigo, provavelmente o mais icónico dos Festivais de música em Portugal. A pequena aldeia do alto Minho agigantou-se outra vez para receber nomes maiores da história do rock sob um calor abrasador. Longe vão os tempos em que a PIDE 'supervisionava' os ‘comportamentos promíscuos’ dos Festivaleiros: várias gerações partilham beijos, abraços e muitos brindes num ambiente acolhedor e genuíno . Após alguns minutos de chegar à estação de comboios de Caminha pude logo sentir uma brisa a liberdade soprada por um grupo de festivaleiros a jogar à bola na berma da estrada enquanto partilhavam um charro e uma litrosa. Como anunciado, o shuttle providenciado pela organização chegou para nos transportar até Vilar de Mouros neste belo mas tórrido dia de agosto no alto Minho. Ao contrário de outros festivais, aqui é óbvia a diversidade entre o público que convive levemente na aldeia de Vilar de Mouros: famílias com crianças, novos e velhos, punks, hippies e todo tipo de rockeiros. Na fila para a cerveja (barata) do acolhedor Café Central já saltam à vista t-shirts de Iggy Pop e Bauhaus e um burburinho omnipresente para ver os nomes maiores deste Festival.
Final de tarde e sobem ao palco os desconhecidos THE BLACK TEDDYS. A banda algarvia tem a honra de abrir o Festival com o seu indie rock que, embora competente, soa demasiado morno e previsível.
Já o sol se põe e sobe ao palco a banda musicalmente mais transgressora do Festival: BATTLES. Um concerto arrebatador, onde o zig zag entre o noisy e melódico da guitarra e synths de Ian Williams se funde com os contratempos demolidores do baterista John Stanier. Um rock artsy que tem tanto de desafiante como de inovador. A banda queixa-se do som (e com razão), que embora tenha melhorado após os primeiros temas esteve longe de ser perfeito. Algumas centenas de fãs que se acumulam na primeira fila pouco ou nada se importam com isso e deixam-se inebriar numa dança tão imprevisível quanto o jogo de ancas sincopado de Ian Williams. A dança torna-se maravilhosamente mais estranha quando ouvimos alguns dos temas de um dos melhores discos dos últimos 20 anos: Gloss Drop.
Segue-se o britânico GARY NUMAN, autor de vários hits nos 70’s e um dos grandes nomes da synth-pop. Embora algo esquecido nas últimas décadas dá para perceber que existe um culto à sua volta quando olhamos nos olhos (pintados de negro) de alguns fãs verdadeiramente emocionados com a sua entrada em palco. Rapidamente grande parte do público se entrega de alma aberta à descarga industrial preparada num set intenso que incluiu o seu primeiro single Cars ou um demolidor My name is Ruin.
E eis que pela primeira vez se sente um frenesim em frente ao palco largos minutos antes do próximo concerto. O motivo são os PLACEBO, a banda mais aguardada da noite. A plateia recebe a banda de Brian Molko e Stefan Olsdal em êxtase, mas gradualmente o ambiente fica mais frio. A banda decide tocar o último disco Never Let me Go quase na íntegra e apesar do entusiasmo de alguns fãs, deixa uma grande parte do público ansioso por ouvir temas de outros álbuns. O clima não melhora com a óbvia irritação de Molko com alguns problemas técnicos. A ansiedade de uma parte do público dissipa-se parcialmente com a poética elétrica de Bionic, tema do álbum de estreia da banda, que por essa altura se mostrava ao mundo entre a fragilidade e provocações queer das letras e riffs refrescantes de laivos punk. Alguns temas dos últimos discos depois tocam um tema de Black Market Music e alguns de Sleeping with Ghosts. Nem um tema do segundo álbum Without You I’m Nothing, obra-prima da discografia de Molko. Se é legítimo uma banda apresentar o seu trabalho mais recente, é também verdade que pode ser muito frustrante para o público (que já os viu dar concertos incendiários em Portugal e ainda mais para quem nunca os viu tocar ao vivo). Acabam com a versão Running Up That Hill de Kate Bush, um final demasiado sem graça (sem graça nenhuma sabendo do revivalismo recente criado à volta deste tema). Um concerto que apesar de não ter sido mau soube a muito pouco para uma boa parte do público.
Prestes a receber o último concerto da noite, o público mostra-se animado mas longe da electricidade sentida antes do concerto de Placebo. Mas logo depois do primeiro tema tudo mudou. Os SUEDE são fogo. A camisa do vocalista Brett Anderson está completamente encharcada depois dos primeiros 5 minutos em palco. Começam com o single do novo disco Autofiction e atiram-se sem medo para uma série de hits dos primeiros três discos. Levanta-se pó a sério pela primeira vez no Vilar de Mouros 2022, loucura que não mais largou o recinto até a uma breve e bonita pausa com uma versão acústica de She’s in Fashion. O concerto seguiu endiabrado até ao final, acabando em grande com New Generation, tema que tal como a maioria do alinhamento foi tocado em modo descarga bruta de rock n roll. Nunca entendi claramente porque os encaixaram na cena brit-pop. Depois de assistir a este concerto parece que eles também não.
Segundo dia de Vilar de Mouros começa para muitos com banhos num rio abençoadamente gelado: há os que tranquilamente vão mudando as toalhas acompanhando a subida da água, os que criam uma ilha de boias em forma de unicórnio ou dinossauro enquanto bebem uma mini bem gelada e até os que convivem com água pelos joelhos ao sabor de um belo vinho verde da região servido pelo Café logo ali em frente à praia fluvial. As honras de abertura deste segundo marcam o regresso dos CLAWFINGER, que já não tocavam em Portugal desde 2005. Depois dos cancelamentos de Limp Bizkit e Hoobastank para este segundo dia, foi óbvia a desilusão de muitos fãs da vaga nu-metal expressa nas redes sociais. No entanto, os que ainda assim compareceram ao Festival, não ficam desiludidos com o peso e boa disposição do rap-metal da banda liderada por Zak Tell que por entre muitas piadas e uma óbvia felicidade por ter à sua frente um público devoto e carinhoso foi descarregando temas bem conhecidos como Recipe for Hate, World Domination ou Rosegrove instalando mosh à séria por entre os muitos fãs que instalaram o caos no recinto do Festival. O concerto termina com o hino Do What I Say, cantado em uníssono no primeiro encore do Festival marcado por uma nuvem de poeira imensa!
Não há fotógrafos em frente ao palco, não à luz de frente, não há euforia visível no público, há porém o veneno doce de Beat The Devil’s Tatoo a instalar lentamente um universo levemente psicadélico, lento e poético dos sempre muito inspirados BLACK REBEL MOTORCYCLE CLUB. Aqui não nem grande show nem grandes conversas, mas o assunto é bem sério: Red Eyes and Tears e Awake transportam-nos até 2001, onde o rock refinado voltou a reclamar o seu espaço mediático. Passamos por uma hipnótica Berlin ou In Like the Rose para acabar em grande com os hits Spread Your Love e Whatever Happened to My Rock N Roll (Punk Song). Concerto discreto com grau de intensidade máximo onde se viram muitos a dançar de óculos de sol à frente de um palco escuro e com uma enorme bandeira pirata. É também desta poética que se faz a história do rock n roll que sempre encontrou mais loucura na estranheza dos Velvet Underground do que na energia de um qualquer riff pesado ou extravagante.
Segue a noite mais diversa de Vilar de Mouros com a antítese do concerto anterior: os cabeças de cartaz SIMPLE MINDS. A banda escocesa contou com uma enchente, era óbvia a presença de público mais velho e aparentemente menos festivaleiro (entre comentários relativos a lugares reservados a gente incomodada com o inevitável contacto físico numa multidão de 16 mil pessoas, foram muitas as manifestações de desconforto de algum deste público). O vocalista Jim Kerr pede desculpas por estar aleijado de uma perna e não poder dançar. No entanto, energia não faltou à banda que o acompanha, com destaque para a cantora Sarah Brown e a poderosíssima baterista Cherisse Ossei. A banda tocou alguns dos seus grandes temas, num concerto tecnicamente irrepreensível onde desfilaram êxitos como Belfast Child, Alive And Kicking e Don’t You (Forget About Me). Um bom concerto, que por momentos uniu o público numa dança descontraída e leve mas que infelizmente caiu na reta final numa aborrecida e interminável exploração do refrão dos dois grandes hits da banda.
Fim de noite e sobem ao palco os TARA PERDIDA, já com bastante menos público no recinto, mantém-se ainda largos milhares em frente ao palco para imensa felicidade da banda punk lisboeta. Evocou-se muito merecidamente o falecido João Ribas (Censurados, Ku de Judas, Tara Perdida) e os fãs mais fiéis instalaram o mosh ao som de de temas como Batata Frita, Nasci Hoje, Desalinhado. Momento alto foi certamente coro do público durante a icônica Lisboa. A cena punk de Alvalade tem pouco ou nada a ver com a dos subúrbios de São Paulo ou de uma Londres consumida pelo ódio de classe de Margaret Tatcher. Seja como for, fazem parte da história da música portuguesa e aqui tiveram um merecido reconhecimento.
São 6 da tarde e já é notória a enchente anunciada para este último dia de festival. Mais tarde a organização anuncia que estiveram presentes mais de 22 mil pessoas nesta última noite cujos os nomes maiores são já lendas da história da da música do séc XX e XXI: Iggy Pop e Bauhaus.
A noite inicia-se mais uma vez com uma banda desconhecida, desta vez feita foi a vez dos THE MIRANDAS apresentarem o seu recente EP de estreia. Uma banda cheia de tiques hard-rock dos 70 's com destaque para a forte presença da vocalista Inês Miranda que animou ainda um recinto a meio gás.
Seguem-se os bem conhecidos BLIND ZERO, banda portuense que marcou os 90 's com o seu rock pós-grunge e que toca em Vilar de Mouros pela terceira vez. Apresentam alguns temas do vindouro Courage and Doom e revisitam alguns temas conhecidos da sua já longa discografia. Um concerto morno, de uma banda cuja carreira - à excepção de alguns temas de A Way to Bleed Your Lover - é desde o início marcada por temas demasiado colados à estética de uns Pearl Jam em dias sem turbulência.
Já com o recinto a rebentar pelos costuras o primeiro grande concerto rock’n’roll da noite: Paulo Furtado apresenta o seu THE LEGENDARY TIGERMAN acompanhado por uma banda crua e eletrizante e por um set vídeo que nos transporta para um ambiente Kerouaquiano pleno de estradas tórridas e intermináveis. “Há duas coisas fundamentais na puta da vida: amigos… e o amor, foda-se!”. Já com um circo de fogo e rock n roll instalado no recinto, uma sentida homenagem a Alfredo Macedo, dj e melómano umbilicalmente ligado à cena da Coimbra, falecido algumas horas antes do concerto. ‘Isto tudo é para ele’. Revisitam-se os primórdios da discografia do homem-tigre com o enigmático Naked Blues e celebra-se em comunhão o refrão de Motorcycle Boy. No final o habitual 21st Century Rock ‘n’ Roll gritado até à exaustão, desta feita com Tigerman a partir a guitarra depois do cabo da sua guitarra o impedir de ir tão longe quanto gostaria. Puro rock’n’roll disseram uns, outros ficaram-se por um ‘já vi guitarras a serem partidas com mais vontade’. Goste-se muito ou assim assim, o Paulo Furtado é um dos grandes nomes do rock’n’roll em Portugal e faz-nos esquecer essa fronteira entre bandas portuguesas e bandas anglo-saxónicas. Uma fronteira que nos dias de hoje é mais fruto de um provincianismo meio salazarista enraizado no público português do que propriamente uma discrepância de qualidade entre territórios.
Daqui para a frente qualquer tarefa aparentemente simples como ir buscar um fino ao bar é absolutamente impossível, tal é a enchente eufórica para receber o pai do punk, do metal, do rock alternativo, do grunge ou de outra coisa qualquer alimentada a suor e pedais de distorção.IGGY POP é um mito. Lança-se a nós em tom spoken word soturno com um desconhecido Rune. “Ya’ ok motherfuckers?” E daí em diante não abandonamos mais a nuvem de poeira que nos envolveu até ao final de concerto: TV Eye, I Wanna Be Your Dog, Lust For Life e Passanger de uma assentada. É bem mais fácil para o septuagenário ter folgo para a próxima do que para o público em permanente êxtase ofegante. “ I’m an old boy, I will die soon but before that I wil take you on a death trip motherfuckers”, são as palavras que antecedem Death Trip, num alinhamento onde metade são temas dos indomáveis Stooges para deleite e emoção do público presente. “I still dirty” dá o mote para a provocatória I’m sick of you, confirmando o que já todos nos tínhamos apercebido: Iggy Pop não anda a dar concertos aos 75 anos para nos entreter: punk is not dead faz mais sentido do que nunca ironicamente cravado na música de alguém que caminha com o mesmo ar provocador na reta final da sua carreira.. Já sem fôlego (o público obviamente) terminamos no melhor caos que ambicionariamos: Down on the Street e Search and Destroy. Segundo a organização, Iggy Pop terá pedido para gravar o concerto poucos minutos antes do início. Foi um encontro muito especial e não há olhar de nenhum dos mais de 20 mil que enchem Vilar de Mouros que não o confirme.
Poderíamos achar que seria impensável igualar a intensidade do tsunami a que acabamos de assistir não fossem os BAUHAUS a tocar a seguir. São muitos os olhos pintados de negro e as t shirts obscuras que transformam o Festival num lugar de culto, confirmado se ouvessem dúvidas pela entrada de Peter Murphy em palco ( qual Nosferatu preparado para nos mostrar que a beleza é sobretudo soturna): ceptro na mão e um olhar que tem tanto de infinamente verdadeiro como de magnético. Começamos o feitiço ao som de Rosegarden Funeral of Sores do não menos lendário John Cale. Vamos já a meio do alinhamento e esta celebração intergeracional e vulcânica desdobra-se entre sorrisos profundos e danças estranhas que mais parecem feitas para celebrar cada uma das fases da lua. Já a meio do concerto, uma inspirada interpretação do primeiro single da mítica banda de Northampton, o fantasmagórico Bela Lugosi’s Dead ou a imponente She’s in Parties atiram-nos para um novo patamar de celebração quando há muito pensávamos estar já no último andar. Os Bauhaus são daquelas bandas que se podem reunir onde quiserem, com a idade que quiserem e sem correr riscos: é impossível o carisma da sua música (e sobretudo das suas interpretações ao vivo) não sobreviver aos efeitos secundários do tempo ou do contexto histórico. Já no encore ouvimos um mais que merecido agradecimento ao mestre Iggy Pop com uma cover de Sister Midnight e acabamos com Ziggy Stardust do comandante Bowie, o ingrediente que faltava evocar para definitivamente nos atirarmos apaixonadamente para o mais misterioso e atraente buraco negro. Lembro-me que há certamente uma coisa comum entre Bowie e os Bauhaus: souberam como ninguém transformar o mundo da pop na mais refinada expressão artística. Um concerto que foi um feitiço maravilhosamente soturno. Com um final assim, o que nos resta dizer senão que para o ano estaremos de volta?
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sábado, 23 novembro 2024